É isto um homem? – Primo Levi - Tomo Literário

É isto um homem? – Primo Levi

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É isto um homem?, livro escrito por Primo Levi, foi publicado em 1988 pela Rocco e conta com tradução de Luigi Del Re.

“Cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é a irrealizável a infelicidade incompleta.”

Primo Levi foi detido pela milícia fascista em dezembro de 1943. Aos vinte e quatro anos de idade fora conduzido com mais de 500 pessoas, num trem, para um destino que eles, os passageiros do fatídico transporte, não sabiam onde ficava. Estamos falando de Auschwitz – uma rede de campos de concentração que ficava na Polônia e eram administrados pelo Terceiro Reich. Auschwitz é considerado o maior símbolo do Holocausto praticado pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial.

“Das 45 pessoas do meu vagão, só quatro tornaram a ver as suas casas; e o meu vagão foi, de longe, o mais afortunado.”

No local, quando chegavam, todos eram separados numa avalição grosseira que os classificavam como hábeis e inábeis. De lá, muitos eram levados para um campo de trabalhos forçados. De maneira contundente o autor expõe o que ali acontecia e percebe-se a anulação do homem, que perde tudo: os entes queridos, os pertences conquistados ao longo do tempo, os hábitos pessoais, as vestimentas, os cabelos. Além de perder tudo que conquistaram, perdem a si mesmos, como o autor revela do trecho abaixo indicado:

“...pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo tão miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana, na melhor das hipóteses, considerando puros critérios de conveniência.”

Primo Levi, vivenciou tudo que relata na obra. Ele mesmo foi um dos homens que chegou ao campo de concentração. Tatuado no braço esquerdo está seu novo nome, um número (174.517). Uma marca que, além da inscrição no corpo, é fixada na alma e que permanece ali até a morte.

O autor nos conta detalhes do que passou nos campos de trabalhos forçados. Tal situação leva ele e todos ali tanto à dor física quanto à tormenta psicológica. É aflitivo pensar na separação dos familiares (homens iam para um determinado campo, mulheres para outro e as crianças para um terceiro, distinto daqueles para os quais os pais eram levados). Além da separação tem de lidar ainda com as incertezas sobre o dia seguinte, no que pode acontecer em breve e no apagamento que se faz do indivíduo: “aprendemos que a nossa personalidade corre maior perigo que a própria vida”. Nesse sentido, o recurso de apagar a personalidade dessas pessoas, é utilizado pelos dominadores para infringir aos dominados a possiblidade de exercer poder sobre eles. Com o apagamento da sua cultura, da sua forma de se ver como indivíduos, fica mais fácil subjuga-los. É, por assim dizer, uma desconstrução ou demolição da estrutura física, da moral e da afetividade que aqueles homens carregavam.

Juntos, aglomerados, o lugar apesar de inóspito e cercado de ações bárbaras, ainda permitia com que alguns dos homens ali tivessem um mínimo de lucidez. Ou pelo menos eram o que tentavam buscar para que conseguissem sobreviver um dia após o outro. Esperam ainda, de certa forma, contar com a sorte: “É estranho: de alguma maneira, sempre tem-se a impressão de ter sorte: de que alguma circunstância, ainda que insignificante, nos segue à beira do desespero, nos permite viver.”

O autor manteve-se firme diante de situações que poderiam levá-lo a outros caminhos.  Diante de tudo que vivenciavam, muitos cogitavam o fim da vida como única alternativa. No entanto, o escritor, personagem de sua própria história, foi capaz de manter-se com um olhar de observador, fazendo com que o relato que nos conta na obra se perpetue e consiga atingir ao leitor. Por tratar-se de um relato é preciso alguma disponibilidade do leitor para imaginar o quão cruel e qual bárbara são as situações que aqueles homens vivenciaram.

Interessante observar que, ao longo da narrativa, Primo Levi se revela um observador das ações, mas não só isso, consegue imprimir os sentimentos que envolviam aqueles homens que ali estiveram com ele, o que possibilita ao leitor a compreensão de amplos aspectos dos fatos narrados, embora não seja uma narrativa linear. Trata-se de um texto composto “não em sucessão lógica, mas por ordem de urgência”, como revela o autor no prefácio.Temos a impressão, durante a leitura, que ele estava ali para fazer os registros, tamanha a sua capacidade de reflexão sobre os acontecimentos.

“A convicção de que a vida tem um objetivo está enraizada em cada fibra do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à sua natureza.”

O que é salta aos olhos é o fato de que Primo Levi não conta apenas as situações vividas pelos judeus que estavam sendo massacrados. Outrossim, também não se coloca como um homem que segue a jornada de um herói. Não há protagonismo, não há um relato com a visão exclusiva sobre a condição do judeu, há sim um pensar sobre como o homem se vê, pensa e age. Portanto, sai da condição de gênero, nacionalidade ou religião e parte-se para o humano. Daí o fato de a pergunta que dá título ao livro reverberar na mente do leitor: É isto um homem?

Um homem é esse ser capaz de ser cruel com seus semelhantes? Um homem é esse ser que é anulado? Um homem é esse que perde as suas ideias e seus ideais? Um homem é isto que se apresentada esgotado física e emocionalmente?

No livro temos um relato emocionante, lúcido e claro e que não abandona a análise filosófica sobre os acontecimentos presenciados por aqueles que são agredidos, violentados.

Outro ponto que vale ressaltamos, é o olhar do autor-observador. Ele é capaz até de perceber que, inclusive alguns algozes, são homens que também tem a sua individualidade anulada pelo sistema. Eles assumem uma postura de agir não por vontade própria, por vezes, mas pelo que o sistema nazista exige deles. Os opressores, figuras estas que estão ali no campo de concentração, são oprimidos por algo maior que também os anula. Acabam que “os personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade ficou sufocada, ou eles mesmo a sufocaram, sob a ofensa padecida ou infligida a outros.”

É isto um homem? é uma narrativa testemunhal carregada de reflexão sobre a existência humana.

Primo Levi / Foto: Reprodução


Sobre o autor:

Primo Levi nasceu em Turim em 1919 e formou-se pela Faculdade de Química de sua cidade antes que as leis fascistas impedissem aos judeus o acesso às universidades. Deportado para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, em 1944, voltou à Itália em 1945. Recomeçou seu trabalho de químico mas, sentindo a necessidade de libertar-se do peso da terrível experiência, escreveu suas lembranças de Auschwitz. Morreu em 1987, tendo publicado nove livros de testemunhos, ensaios, ficção e poesia.

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