[Resenha] A palavra que resta – Stênio Gardel

 

A palavra que resta, livro de Stênio Gardel, foi publicado pela Companhia das Letras em 2021 (149 páginas).

Por muito tempo, mais de cinquenta anos, Raimundo, homem analfabeto, guardou uma carta. Agora, com 71 anos, nos conta de quem recebeu a carta e por tudo que passou até os dias atuais, sem poder ler o que ali estava escrito. Como descreve o narrador: “A carta guardava uma vida inteira.”

O envelope que foi dobrado e desdobrado inúmeras vezes, guardado sempre por perto, se torna algo precioso, um segredo que precisa ser desvendado. O homem, incapaz de ler o que há ali, precisava saber que palavra resta. A carta era, pois, recheada de palavras e frases que vieram de um amor que foi brutalmente interrompido na juventude. Para saber o que guarda o conteúdo daquele insólito envelope, Raimundo precisa aprender a ler e a escrever.

Em tempos passados a epístola lhe fora entregue no dia em que havia programado de fugir com Cícero. Na juventude os dois dividiam aventuras e perceberam que havia entre eles algo mais que a união e amor de amigos.  O desejo que transborda, a troca de olhares e a aproximação dos corpos revela a existência de amor. Aos olhos de todos que os rodeiam, incluindo os familiares, esse não era o amor certo, era impróprio, portanto, deveria ser rechaçado, evitado, interrompido. Naquela comunidade rural há de se pensar o peso que o preconceito causa na vida daqueles jovens que, inclusive, se questionam sobre suas próprias ações.

“_ Tu não acha que é errado isso? Passar o resto da vida assim? E quando tu ficar mais velho e eu ficar mais velho, casado com filho e com isso escondido? E quando tem gente perto, tem que ficar vigiando pra não olhar como quer olhar, não falar como quer falar. Tu não pensa nisso não, hein Gaudêncio? Não pensa?”

Teria Cícero fugido no fatídico dia em que Raimundo teria com ela um encontro? A carta é a única coisa palpável que restou a Raimundo desde aquele tempo em que vivia no ambiente rural, com banhos de rio e a lida na roça.

A ausência deixa uma lacuna na vida de Raimundo que nunca mais botou os olhos sobre o outro, e restou a ele apenas palavras escritas no papel. Palavras que ele, que não sabe ler, é incapaz de decifrar. Na carta a ausência se torna presente, materializada.

Durante o período em que viveram um romance, os jovens foram descobertos e repreendidos com violência. A tormenta em relação ao amor que, para os outros, é proibido, deixa na mente deles a vergonha e o medo. As famílias não aliviam. O pai bate em Raimundo, Cícero também sofre violência da família. A proteção que os familiares querem dar aos jovens é a antecipação de uma violência gratuita, revestida de uma falsa proteção e da exigência de que devem seguir o padrão determinado pela sociedade.

O preconceito que a priori parece velado e revestido de uma falsa proteção e de um falso ensinamento sobre as coisas da vida, nem é tão velado assim. O autor coloca na história o reflexo que as famílias desses homens impuseram a eles com seus preconceitos. Eles foram afetados de maneira profunda a ponto de as marcas perdurarem desde a adolescência até após os 70 anos de Raimundo. Há uma violência que o feriu por dentro.

Raimundo passa a vida mudando e tentando se encaixar nos padrões exigidos pela sociedade. Apesar disso, tem um novo relacionamento com uma travesti, Suzzanný. É com ela que o personagem começa a construir a sua redenção, que não se faz completa. O próprio Raimundo, em algumas passagens, demonstra que carrega o preconceito estrutural que a sociedade impõe. Como ele poderia ser visto com uma travesti? Mais uma vez aquela imagem de preconceitos e discriminações impostas pela família em outro tempo, ressoam na mente e nas ações do personagem.

Em alguns momentos, certamente o leitor vai se questionar: Por que ele não entrega a carta para outra pessoa ler? Não é tão simples assim e nisso Stênio Gardel constrói uma trama que se sustenta. Raimundo é um homem que sofreu por seu amor, carrega os traumas, os medos e o preconceito que lhe foi imposto. Entregar a carta a outrem seria também entregar o que há dentro dele.

Em Raimundo habita o medo de que o texto da carta o exponha, a situação que ele já havia vivenciado com Cícero poderia ser agravada diante da leitura do conteúdo daquele papel. Esta aí o fato que o faz não entregar a carta a ninguém, enquanto tenta aprender a ler para conseguir decifrar por si próprio o conteúdo do papel amassado.

“Eu não posso me afogar nem deixar que me afoguem, o corpo pode ficar escondido debaixo d’água, do pescoço para baixo, mas a cabeça, só acima da linha d’água, a cabeça ninguém vê dentro mesmo, nem sou obrigado a mostrar o que sou a seu ninguém...”

Quando da leitura do livro, que tem poucas páginas, mas uma grandeza que se faz pela bela narrativa, pela grandeza da história e pelo impacto dos personagens, sentimos a necessidade de ter mais detalhes, de outros andamentos que a vida deles poderiam ter tomado. Isso, no entanto, não é um ponto negativo. Pelo contrário, se no pouco de páginas conseguimos ter esse impacto e essa vontade de querer mais da vida das criações de Stênio, a obra se revela grande pela história que nos dá, pois transborda além do que lemos.

O livro tem uma escrita que segue um fluxo de oralidade e de pensamento do personagem. A forma como as orações, frases e parágrafos se apresentam, lembram em muito o estilo de José Saramago. Vírgulas, pontos, parágrafos iniciados com letras minúsculas, chamam o leitor para se agrupar ao fluxo de pensamento do narrador. Vale lembrar que como é analfabeto o desencadeamento de sua fala transparece no texto em construções de frase que parecem ter sido buriladas pelo autor com cuidado, para que cada uma delas se encaixasse no texto para provocar algum sentimento no leitor.

Há, notadamente, um trabalho apurado de linguagem realizado pelo autor. O escritor intercala o narrador em terceira pessoa com a voz do personagem, em primeira pessoa.  O que a princípio causa estranheza, vai se tornando interessante com o avançar do livro, tendo em vista as alternâncias de vozes que nos levam a conhecer a história e absorvê-la também pelo fluxo de pensamento que ecoa da voz de Raimundo. Sem contar que há na produção do texto uma prosa poética.

O estilo empregado por Stênio Gardel funcionou muito bem nessa narrativa. O pensamento do personagem tem total consonância com as suas características e com a forma com que nos apresenta a história.

A obra versa sobre o preconceito que os jovens enfrentam com a sexualidade, aborda como as famílias não aceitam e tentam mudar esses homens, fala em camadas sobre o preconceito estrutural que é refletido por vezes sem a consciência de quem embarca no que deseja a sociedade, mas fala, sobretudo, de um amor que mexe com a vida de outro alguém. Para além disso, há também a busca por um lugar de acolhimento, ainda que esse local carregue certa precariedade.

A obra mostra no plano de fundo a dificuldade de quem não é alfabetizado, a ausência de educação que prejudica a vida do cidadão em coisas simples e cotidianas. Pense na impossibilidade de ler uma simples carta de amor? Tal dificuldade é um impeditivo na vida do personagem, algo que o aprisiona não por um período, mas pela vida inteira.

Stênio Gardel apresenta um primeiro romance digno de aplausos

Sobre o autor:

Stênio Gardel nasceu em Limoeiro do Norte, interior do Ceará, em 1980. Trabalha no Tribunal Regional Eleitoral do Ceará e é especialista em escrita literária. Desde 2017 tem participado de diversas coletâneas de contos. A palavra que resta é seu primeiro romance e foi escrito durante o Ateliê de Narrativas ministrado pela escritora Socorro Acioli, em Fortaleza.

Ficha Técnica:
Título: A palavra que resta
Escritor: Stênio Gardel
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2021
Edição: 1ª
Páginas: 149
ISBN: 978-65-5921-028-2
Assunto: Literatura brasileira