As Doenças do Brasil, de Valter Hugo Mãe,
oitavo romance do escritor, foi publicado no Brasil pelo selo Biblioteca Azul –
Globo Livros – em 2021 (208 páginas). A
obra começa com um prefácio da grande escritora Conceição Evaristo, que nos
apresenta o livro de modo fascinante, com seu olhar aguçado para aquilo que a
escrita de Valter Hugo representa e qual será a temática abordada. Com a
chancela dessa grande escritora brasileira combinada com a narrativa de Valter Hugo Mãe, a expectativa em relação ao livro só aumentou.
Refleti sobre o tema, antes de ler, imaginando
como seria a inserção de Valter em culturas tão diversas, já que a obra versa
sobre personagens negros e indígenas, e percebi que o autor não fala pelos
outros, coloca, pois, a sua visão sobre o período do colonialismo e não nos
poupa em apresentar uma visão nada idealizada do período de chegada de
portugueses no Brasil.
Fui pesquisar um pouco para entender o que o
havia motivado e li uma frase que ele disse num encontro que aconteceu em
Portugal, quando do lançamento dessa obra em terras europeias: “Os meus
livros são um lugar de escuta”. Bastou para que o pontapé inicial na
leitura fosse dado sem perturbação. Uma vez superado esse entendimento, sigamos
com as considerações sobre o livro.
O título “As doenças do Brasil” é uma
referência ao “Sermão da Visitação de Nossa Senhora”, de Padre Antônio Vieira,
que em certo trecho diz: “...tomou o pomo que não era seu, e perdeu a justiça
em que vivia, para si e para o gênero humano. Esta foi a origem do pecado original, e
esta é a causa original das doenças do Brasil: tomar o alheio, cobiças, interesses,
ganhos e conveniências particulares, por onde a justiça se não guarda, e o
Estado se perde. Perde-se o Brasil...” Perceba que o referido trecho é também
um indicativo do que é abordado no livro. Fala-se pois sobre a cobiça, a tomada
de coisas que pertencem a outros povos, de interesses que se sobrepõe a qualquer
condição de ser humano, entre outros apontamentos que já estão ali, delineados
no texto de Padre Antônio.
No início do livro temos trechos de cartas da
época do descobrimento do Brasil. Posicionamo-nos, portanto, no Século XVI,
época do descobrimento do Brasil. A história começa demostrando que um certo
inimigo fora capturado. Passaremos a conhecer a vida do protagonista que chama
Honra, filho de uma abaeté (a tribo indígena que, no livro, vive em terras
brasileiras) e de um homem branco (este último o estuprador da mãe do
protagonista). Na tribo em que o jovem vive, a força da natureza e a busca dos
homens por enfrentar as agruras do tempo são relatadas nas páginas da obra.
Veja-se que já temos logo no ponto de partida
um episódio fatídico, vez que sabemos que o protagonista é fruto de um estupro.
Temos então um apontamento sobre a violência contra as mulheres e a imposição do
colonizador sobre o povo (como se este não tivesse voz). Começamos a delinear
alguns aspectos político-sociais que serão apresentados ao longo da trama fictícia
criada por Valter. A miscigenação não foi algo natural, veio por meio da
impetração de violência física, emocional e sexual.
Percebemos também, logo no início da trama, que
o autor cria um povo e uma linguagem. A forma como se comunicam e a maneira de
se expressarem são próprias. Ora a língua demonstra a essência de um povo. Para
o linguista Ferdinand de Saussure, que inaugurou a linguística como ciência autônoma,
a linguagem é social e individual; psíquica; psicofisiológica e
física. Portanto, há na linguagem a fusão de fala e língua. Para Saussure, a
Língua é definida como “a parte social da linguagem e que só um indivíduo
não é capaz de mudá-la”. Já a fala é um ato individual. Nota-se, portanto,
que ao criar uma língua utilizada pelos personagens do livro, o autor reforça
que essa é elemento social de um povo. Inicialmente, com a criação dessa língua
por Valter, pode haver um estranhamento do leitor com o texto, mas com o
avançar das páginas é possível se habituar com o estilo empregado e absorver as
palavras.
A prosa de Vater Hugo Mãe é carregada de poesia.
O estilo utilizado pelo autor, ora com parágrafos longos, ora com um fluxo de
pensamento que parece não poder ser interrompido, desperta a consciência do
leitor sobre o tema que trata, sem deixar, contudo, de carregar em nós a emoção
necessária e a perturbação em relação ao fato de refletirmos sobre como as
pessoas eram tratadas na época colonial. O texto nos leva da sensibilidade ao
inconformismo, da consciência à culpa. Observa-se na lírica empregada que essa
suavidade própria da poesia não pintou em tons menos quentes a violência
impetrada pelos colonizadores com os povos que aqui habitavam. Tampouco
minimiza conflitos. A lírica empregada, portanto, não torna tudo idílico e
afastado de uma realidade dura e cruel a que os povos negros e indígenas foram
submetidos.
Há na história um panorama de resistência,
empregada pelos personagens Honra e Meio da Noite – um negro que fugindo é
capturado pelos indígenas e passa a viver na tribo de abaetés, construindo com
Honra um laço de amizade (elos de resistência que se unem). Inicialmente, Meio
da Noite desperta dúvidas, pois o que faz aquele homem negro misturado aos
índios? Mas, aos poucos, vai se demonstrando que eles têm um inimigo em comum:
o homem branco, que utiliza de sua violência para subjugá-los. Os laços se
firmam a partir de tal entendimento, coisa que falta do lado do homem branco
que não vê os negros e indígenas como humanos que lhe são caros.
Outro aspecto que notamos é o fato de que
muitas vezes esses povos abrem mão de sua cultura para fugirem da escravização
do branco que os atormenta. Fugindo da violência dos brancos, suas raízes são
deixadas para trás. Mais uma vez o colonizador extermina algo comum a um povo.
As Doenças do Brasil é um livro instigante. Nos
provoca com a linguagem utilizada e com as temáticas que são tratadas ao longo
da trama. Ainda que seja uma obra ficcional há muito de uma realidade dura que
foi vivida pelos indígenas e negros em terras brasileiras. Provoca-nos, ainda,
para que estejamos ligados com a história pregressa de nosso país. Racismo,
tomada de terras, desrespeito ao humano, violência, abusos. Esse despertar, não
é superficial. O leitor dialoga com a obra ficcional, na medida em que sua
mente faz refletir sobre os fatos históricos.
Sobre o autor:
Valter Hugo Mãe é um dos mais prestigiados autores portugueses da
atualidade. A sua obra é editada em diversos países, com destaque para o
Brasil, Alemanha, Espanha e França. Já publicou seis romances, além de poemas e
crônicas. Agraciado com os prêmios José Saramago (2007), Portugal Telecom de
melhor romance e Grande Prêmio Portugal Telecom (2012), o autor recebeu elogios
de José Saramago, ganhador do único prêmio Nobel da língua portuguesa, que o
definiu como um “tsunami estilístico”.
Ficha Técnica:
Título: As doenças do Brasil
Assunto: Ficção histórica
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