Quando a vida não parece nada fácil, a alternativa encontrada por Nora Seed, protagonista do livro A Biblioteca da Meia-Noite, é optar pela morte. Horas antes da tomada dessa decisão, a mulher de trinta e cinco anos, passa por uma sucessão de problemas, o que parece ratificar de que a decisão tomada é a mais certa. Nora perde o emprego, seu gato morre e, além disso, ela tem uma relação conturbada com seu irmão.
"Ela só tinha certeza de uma coisa: não queria ver o amanhã chegar. Nora se levantou. Pegou uma caneta e uma folha de papel."
Mas, e se houver alguma forma de se arrepender de tudo aquilo pelo qual passou na vida? E, mais, se houvesse a oportunidade de viver todas as decisões que poderiam ter sido tomadas antes?
O livro A Biblioteca da Meia Noite, de Matt Haig, com tradução de Adriana Fidalgo foi publicado pela Editora Bertrand Brasil do Grupo Editorial Record, em 2021 (306 páginas).
Num local desconhecido, entre a vida e a morte, a protagonista se vê num ambiente repleto de livros de capas verdes, em diferentes tons da cor. O local é identificado como a Biblioteca da Meia-Noite. Daí o fato de a capa do livro publicado apresentar estantes com livros em diferentes tons de verde, uma referência clara ao conteúdo da obra.
Naquele lugar sinistramente mágico, ela encontra uma bibliotecária que dá início a uma conversa acerca de sua trajetória e aponta que cada um dos livros ali presentes é uma vida que Nora poderia ter vivido. Mostra à mulher o livro do arrependimento para que ela leia e saiba quais foram todos os arrependimentos que teve ao longo de sua jornada. A Sra. Elm é a mesma bibliotecária dos tempos em que Nora cursava a escola e se recolhia na biblioteca, quando criança.
"(...) Na verdade, mesmo tendo avançado apenas alguns passos, não conseguia mais ver as paredes. No lugar delas, havia estantes. Corredores e mais corredores de estantes, indo até o teto e ramificando a partir da vasta galeria por onde andava. Ela entrou em um dos corredores e parou para
admirar, atônita, aparentemente infinita quantidade de livros."
Começa aí o desenrolar da obra. Na medida em que Nora escolhe uma vida a seguir, um dos livros é apresentado a ela, que passa por vivências que tem relação com seus arrependimentos do passado. Uma nova vida se abre a cada livro que ela escolhe e então, a personagem é lançada para dentro dessa vida. Nora será uma glaciologista, uma estrela da música, uma mulher casada que vive com o marido e tem um pub, se tornará uma filosofa conhecida, casará com um cirurgião, terá filhos, passará pela morte da mãe e do pai, e vivenciará outras tantas vidas que estão ali disponíveis.
Natural do ser humano fazer comparações e não é diferente com Nora. Ela compara as vidas que poderia ter vivido com a que viveu até ali.
Nesse vai e vem de informações que vamos recebendo com as possibilidades de vidas a serem vividas por Nora, percebemos como aquilo a afeta de diferentes modos. Tantas são as possibilidades que isso esbarra na infelicidade que ela vivenciava com o momento presente. Será que tudo aquilo que acredita ser o melhor, realmente é? Se não é do jeito que ela espera, ela deve se frustrar ou deve seguir adiante?
Nora, tem a possibilidade, de tomar a decisão de voltar à biblioteca, fugindo da nova vida que escolhe. O que ela faz algumas vezes, por não ter conseguido dar andamento à vida que estava levando. É uma válvula de escape. Se pensarmos bem, não há momentos em que desejamos viver uma outra vida e escapar de algum problema que enfrentamos? Seria essa a melhor solução?
O autor trabalha na história a percepção que temos da existência e do momento presente que vivemos. Não há como saber se nossas escolhas terão um final feliz, se é que há final, se é que ele tem que ser feliz. Tudo que Nora vivencia em suas viagens pelos livros que escolhe, demonstra que não há como prever o futuro e que tudo que acontece lá na frente é fruto das nossas escolhas. Resumidamente, pode-se dizer que a percepção que temos de tudo que vivemos advém, única e exclusivamente, das nossas ações pretéritas. Nós fazemos nosso caminho. E há coisas que não serão mudadas, porque não dependem de nós.
"Cada vida que ela experimentava produzia uma sensação distinta, como os diferentes movimentos de uma sinfonia."
David Henry Thoreau é o filósofo preferido de Nora, tanto que há várias inserções de frases dele no livro. Frases estas que surgem em momentos de reflexão da personagem. E isso não é a toa. Thoreau, que foi escritor, poeta, historiador e filósofo nascido nos Estados Unidos do Século XIX, era bastante interessado na ideia da sobrevivência diante de contextos hostis, da mudança histórica e da decadência natural.
O filósofo buscava abandonar a ideia sobre ilusão de forma que pudesse descobrir quais as verdadeiras e essenciais necessidades da vida. É essa busca, diante de ambientes diversos e ameaçadores, que Nora persegue. A protagonista tenta encontrar a sua razão de viver (sua necessidade precípua).
A Biblioteca da Meia-Noite é um livro sobre os quais li e ouvi diversos comentários elogiosos à obra. Possivelmente por ser um hype, muitos dos leitores carreguem seus elogios com certa emoção. Isso não é ruim, faz parte do processo de consolidação da obra. E, se de algum modo, a história toca inúmeros leitores, não podemos deixar de perceber que os temas que são tratados ali são próprios da condição humana e são temas recorrentes ao nosso ato de existir: luto, perda, busca por autoconhecimento, frustrações, escolhas.
Trata-se de um livro que, certamente, faria sucesso como um filme. Tem uma personagem que se vê perdida, tanto emocionalmente, quanto em relação às suas próprias escolhas, que se sente fora do mundo, ou pelo menos, que escancara que a realidade que vive não a agrada. Ela não lida bem com os percalços pelos quais tem que passar (a perda do gato, a perda do emprego, a perda do pai, a relação conturbada com o irmão). Há uma soma de fatores que constituem a psique fragilizada de Nora. Tanto não consegue lidar com os acontecimentos que decide interromper sua jornada (que é quando ela vai parar na biblioteca).
"Nora se deu conta (...) de que era capaz de muito mais coisas do que imaginava."
Uma ressalva. Supriria alguns diálogos que há na trama, pois eles não são relevantes na história de Nora Seed, bem como não nos levam a formular outras teorias ou perseguir uma outra possibilidade de plot twist, nem corroboram para estruturar a história, portanto, ali estão, mas poderiam não estar. Alguns trechos seguem essa mesma linha e poderiam ser suprimidos.
O livro tem um ar de história fantasiosa com a passagem por diferentes vidas que a personagem faz a partir dos livros que escolhe na biblioteca. Esse toque de fantasia (refiro-me à “viagem no tempo” feita pela personagem), permite ao leitor conhecer Nora em diferentes vidas. Uma abordagem interessante feita pelo escritor é que, no momento em que Nora chega a uma nova vida ela não carrega todo o conhecimento que tem sobre ser essa pessoa. Pelo contrário, ela por vezes não sabe quem são as pessoas com quem tem que lidar, desconhece os hábitos que possui, a profissão que exerce, como os outros a veem (em linguagem popular, ela cai de paraquedas na nova vida). É como se a vida começasse do ponto zero para ela, enquanto para os outros que com ela vivem a vida segue, por vezes, alguns outros personagens até estranham a atitude de Nora para com eles.
Tem a movimentação das estantes que há na própria biblioteca que parece mágica (em dados momentos lembrei-me das escadas de Hogwarts, da obra de J.K. Rowling, do famoso bruxo Harry Potter). Há a bibliotecária que é uma figura extremamente enigmática, daquelas a quem podemos atribuir o papel de Deus, oráculo, destino ou livre arbítrio a depender da interpretação que será feita pelo leitor. Poderíamos até dizer que ela se torna a consciência de Nora Seed, uma espécie de grilo falante do Pinóquio.
A Biblioteca da Meia-Noite é um livro que desperta reflexão. Vivemos uma intensa busca pela vida perfeita. A vida perfeita existe?
Sobre o autor:
Matt Heig é o autor best-seller internacional de Razões para continuar vivo, Observações sobre um planeta nervoso e seis romances para adultos, incluindo A possessõ do Sr. Cave, Como parar o tempo, Os humanos, Os Radley e Sociedade dos pais mortos. Matt também escreve livros paremiados para crianças e adolescentes. A Biblioteca da Meia-Noite é seu romance mais recente e vendeu mais de dois milhões de exemplares em todo o mundo.
Ficha Técnica:
Título: A Biblioteca da Meia-Noite
Escritor: Matt Haig
Tradução: Adriana Fidalgo
Editora: Bertrand Brasil
Edição: 3ª
Ano: 2021
Páginas: 306
ISBN: 978-65-5838-0054-2
Assunto: Ficção inglesa
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