“Não consigo acreditar em uma família
que nunca vi e que agora, de repente, me quer de volta.”
Aos treze anos a personagem narradora
que centraliza da história do livro A Devolvida, da escritora italiana
Donatella Di Pietrantonio, é levada para sua família natural. Ali, em um novo
ambiente e com pessoas que ela desconhecia, ela passa a conviver com sua “outra
mãe”, o pai e os irmãos.
Nessa nova família a personagem se
depara com situações desconfortáveis e que não faziam parte do seu cotidiano
até então. Os irmãos tem que trabalhar, é necessário que ajudem nas atividades
domésticas, os pais aparentemente não demonstram afeto, há a presença da
violência, disputas diárias por espaço, além de hábitos pessoais de cada membro
da família e com os quais ela tem de se acostumar. É um novo mundo que difere
em muito do cenário com a qual estava acostumada até então.
O clima desconfortável advém tanto do
espaço físico, representado, exemplificativamente, pela divisão do colchão com
a irmã na hora de dormir, os cheiros desagradáveis que há na residência e o aperto;
como de aspectos psicossociais, dentre os quais podemos mencionar a pobreza, a
falta de habilidade dos pais em lidar com os filhos e a ausência de afeto. Esse
mesmo clima de desconforto também é demandado da estranheza que ela, aos treze
anos de idade, sente em relação tudo isso e da dúvida sobre o real motivo que
fez com que ela fosse devolvida a essa família.
“...Não estou bem aqui neta
cidadezinha e não é verdade que seus primos estavam me esperando; ao contrário,
eles me receberam como uma desgraça e sou um empecilho para todos, além de ser
mais uma boca para comer.”
Na pequena cidade italiana as pessoas
a apontam. Ela é a menina que nasceu numa família pobre e numerosa que foi dada
para parentes mais ricos cuidarem, lugar em que conheceu uma vida abastada,
cercada de carinho e atenção. No entanto, ela fora devolvida à família natural quando
cursava o ensino médio.
Notadamente a protagonista tem certo
inconformismo com relação às situações que a envolvem. Nada do que vive é como
ela queria e ser devolvida para essa família é algo que definitivamente não
estava em seus planos. Isso se reflete em sua recusa em aceitar a nova situação
familiar que se configura, apesar de com ela ter de conviver.
“Eu era a Devolvida. Não conhecia
ninguém ainda, mas eles já sabiam bastante a meu respeito. Tinham escutado as
conversas dos adultos.”
O livro A Devolvida foi publicado no
Brasil pela Faro Editorial em 2019 e tem tradução de Mario Bresighello. A
personagem que não tem nome sente-se sufocada nesse novo ambiente. O
sufocamento vem até dos colegas de escola que a rechaçam, que gozam dela e que
achincalham a sua história pessoal.
A Devolvida busca entender o seu lugar
no mundo, compreender a sua trajetória (de onde veio, onde está e para onde
vai), tenta se adaptar na família pobre que dizem ser de seus pais e irmãos
naturais. Tudo isso ela faz sentindo-se uma estrangeira tentando assimilar os
hábitos e costumes de um novo povo, de um novo lugar, se adaptando
metaforicamente a uma nova linguagem e a novas formas de interpretar a vida.
A narração em primeira pessoa imprime
um tom mais intimista com a protagonista e faz com que sintamos a força do
texto da autora, que dá ao leitor a sensação de desconforto que a personagem
sente e faz com que percebamos de forma emocional os fatos que permeiam a sua
vida e como os personagens que a circundam a afetam. A inquietação que toma a
protagonista é a mesma que toma o leitor no avançar das páginas.
Os capítulos curtos dão agilidade à
trama sem, contudo, perder a profundidade e a contundência do que nos é contado pela
Devolvida. Há na sua narração a ausência de si mesma, uma busca por manter-se
inteira mesmo diante de tudo que desmorona e de seus pedaços que parecem não se
conectar. Há uma tristeza que a ronda e que transparece em seu relato, mesmo
quando ela demonstra posições firmes e de resignação diante do que a aflige.
Pertencimento e estranhamento são
duas palavras que permeiam os sentimentos da Devolvida. Quem é aquela família
que seria a sua família original? Quem são aquelas pessoas que de um dia para o
outro passam a fazer parte do seu cotidiano? O que aconteceu com sua mãe e qual
a razão de voltar para aquela casa e para aquela gente com a qual não se identifica?
Que parte da sua vida é real e o que é especulação? Qual o motivo de passar por
tudo que tem passado?
São perguntas que são feitas pela
protagonista implicitamente, que estão nas entrelinhas do que relata ao
descrever as situações que vivencia.
“_Não tenho mais
certeza de nada, é tudo confuso.”
O fato não termos a figura da
protagonista identificada, a não ser pela alcunha de Devolvida, nos faz também
sentir esse estranhamento de não se saber quem é “o indivíduo” que habita
aquele corpo. É assim que a personagem se sente, inominada, sem identidade,
tentando se construir como indivíduo, como uma pessoa capaz de entender porque
a mãe não se recuperou e voltou para busca-la e porque o pai, que aparentemente
parecia transtornado, também não o fez. O sentimento de abandono reverbera na
vida da garota. A palavra “mãe” está travada em sua garganta.
A Devolvida tem de enfrentar as
diferenças sociais. Se na outra família havia conforto na nova casa há
escassez, uma luta diária pela sobrevivência. Tem de lidar com as questões de
afeto. Se numa das casas o recebia periodicamente e era tratada com carinho, na
outra tem de lidar com o distanciamento e a indiferença.
Conseguimos sentir a força e a
sensibilidade presentes na narrativa de Donatella.
A Devolvida é comovente, um belo
texto que nos faz refletir sobre o sentimento de subtração e de esvaziamento
que as pessoas podem sentir. O livro nos conduz por uma história que nos faz
pensar sobre como mesmo diante da dor buscamos algum sentido para tudo que nos
cerca.
Donatella Di Pietrantonio | Foto: Reprodução |
Sobre a autora:
Donatella Di Pietrantonio nasceu e
vive na Itália, na região de Abruzzo. Formou-se em Odontologia e, só mais
tarde, descobriu a literatura como vocação. Os trabalhos da autora colecionam
prêmios por todo o mundo e seus livros já foram traduzidos para diversos
idiomas. É vencedora do prêmio Campiello e do prêmio Napoli.
Ficha Técnica:
Título: A Devolvida
Escritor: Donatella Di Pietrantonio
Tradutor: Mario Bresighello
Editora: Faro Editorial
Ano: 2019
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-9581-089-1
Páginas: 160
Assunto: Literatura italiana
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