O Sol Ainda Brilha - Anthony Ray Hinton - Tomo Literário

O Sol Ainda Brilha - Anthony Ray Hinton

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"E é o julgamento da corte e a sentença da corte que o réu, Anthony Ray Hinton, sofra morte por eletrocussão em data a ser estipulada pela Suprema Corte do Alabama..."

Você já pensou em ser acusado de um crime que não cometeu? E, se além de ser acusado, você fosse levado a julgamento e condenado? Agora imagine que sua condenação seja a pena de morte. Acrescente a isso o fato de ser negro e sofrer preconceito racial, além de não ter condições financeiras para suportar um sistema judiciário em que a situação econômica do acusado sirva como condição para o acesso a uma defesa mais ampla. Imaginou?

Enquanto tudo estiver em sua imaginação, e creio que o impacto seja grande, ainda assim não é algo tangível. Mas, para Anthony Ray Hinton, que conta sua história no livro O Sol Ainda Brilha, publicado no Brasil pela Editora Vestígio em 2019, e que tem tradução de Luis Reyes Gil, isso não foi imaginação. Trata-se de uma história real vivida por ele.

Anthony passou quase trinta anos no corredor da morte, a poucos metros da sala em que a execução dos criminosos acontecia, esperando pela finalização de sua pena capital por crimes que ele não cometeu. O livro, logo de cara, nos apresenta um relato contundente de uma história real que provoca impactos em quem lê.

"Ninguém é capaz de compreender o que é a liberdade até ser privado dela. É como passar todos os dias numa camisa de força, o dia inteiro. Você não pode fazer nenhuma escolha a respeito de como viver. Meu Deus, o que não daria para poder fazer uma escolha - uma escolha qualquer."

O autor começa a obra nos colocando na cena do julgamento e depois passamos a acompanhar a sua história pregressa, que tem início com os relatos de infância, a vida com uma família pobre, o panorama sobre a situação de dificuldade que encontrava no ambiente em que viveu, o que inclui o preconceito racial, a acusação de ter dirigido um carro que não lhe pertencia e a ausência de habilitação. Mas não foi por isso que ele foi punido. A punição veio por meio da acusação de assassinatos de dois homens.

Depois da condenação Ray nos relata os dias que viveu no corredor da morte, a forma como lidava com os policiais que acompanhavam os presidiários condenados à morte, a relação que se formou com outros apenados (o que inclui a criação de um clube do livro), as visitas que recebia da família e de seu fiel amigo Lester, a relação com os advogados que trataram de seu caso ao longo do tempo, a espera em relação à sua soltura.




"É difícil explicar exatamente qual é a sensação quando você está sendo julgado. Há uma vergonha. Mesmo quando você sabe que é inocente. Ainda assim dá a sensação de que você está coberto por algo sujo e mau. Eu me sentia culpado. Sentia como se minha própria alma estivesse sendo julgada e considerada falha. Quando parece que o mundo inteiro te acha um cara mau, é difícil você se conectar com seu lado bom. Mas eu tentava."

Anthony, inocente que era, se empenhava com dignidade para que fosse libertado, enquanto permanecia trancafiado numa pequena cela a cerca de nove metros da sala de execução em que estava a cadeira elétrica. Naquele corredor, muitas foram as vezes em que viram pessoas sendo levadas à execução. Ali também sentiram o cheiro da morte.

O fato de ter mantido consciência em relação ao que acontecia e lutar com dignidade pela sua soltura, haja vista que advogados demonstraram interesse puro em obter dinheiro e nenhum empenho em brigar por sua inocência, Anthony passou por momentos de dificuldade dentro da cadeia. Sentimentos e sensações apavorantes o tomaram, mas ele foi capaz de criar mecanismos que facilitassem a sua permanência num local pequeno e fechado, no qual não deveria estar. Esses mecanismos, de algum modo, faziam com que aquele peso se tornasse mais leve e com que ele fosse capaz de manter sua fé em sair da prisão e escapar da pena que haviam lhe imputado.

"Minha mãe não me educou para odiar. E eu sinto muito quando vejo alguém que foi ensinado a odiar em vez de amar, a brigar em vez de ajudar. Sinto muito por isso e por qualquer um (...) que sinta vergonha por aquilo que lhe foi ensinado (...) Deus sabe o que está no coração de cada homem. O que alguém fez ou deixar de fazer fica entre ele e Deus, e não é da conta de mais ninguém."

A história de O Sol Ainda Brilha levanta questões que afligem. Juízes, advogados e promotores imbuídos em condenar pela cor da pele e pela condição social, não reconhecendo falhas no processo. O racismo manifesto na atuação de quem deveria defender a lei e garantir direitos. O livro mostra ainda a incapacidade do estado em resoluções rápidas e ágeis e a sucessão de erros que são cometidos e desprezados por quem deveria garantir o devido processo legal. Traz à tona, também a ação de homens que se imbuem de reparar o mal feito e se esmeram em contestar o que está errado.

Imaginar-se na posição de Anthony Ray Hinton, como provocado no início da resenha, é angustiante. Ele consegue nos transmitir ao longo das páginas do livro o clima e a tensão que paira no corredor da morte. Além de conseguir também imprimir o amor incondicional que tinha por sua mãe (que sempre o visitava) e a relação de forte amizade com Lester (o único que fora todos os dias de visita encontrá-lo na prisão). A história comove, emociona, angustia, revolta e provoca um looping de sentimentos e ratifica a constatação de que homens são falíveis e o sistema judiciário também é falível, posto que é feito por homens.


Salta aos olhos o preconceito racial, sem dúvida. É claro, notório, que muitas das ações foram baseadas em levá-lo a ser o responsável por algo que ele não poderia ter cometido. As evidências e as provas são mostradas por laudos e depoimentos que o leitor acompanhará ao longo do relato do escritor.

Ray também demonstra força e esperança. "Esperança pode ser uma palavra bonita na prisão. Pode ser provocadora por ficar tão próxima e, ao mesmo tempo, tão fora de alcance. Eu tinha esperança. Tinha muita esperança. Mas às vezes ficava impaciente. Minha vida passava por mim muito depressa, e todo ano eu lamentava o ano que havia perdido. Era grato por não ter sido executado, mas era como se eu existisse num limbo - flutuando em algum lugar entre a vida e a morte, sem nunca saber onde pousar." As dificuldades de se enfrentar o ambiente de um presídio e cumprir uma pena da qual não se tem culpa, deve ser um fardo extremamente pesado de carregar.

O Sol Ainda Brilha é uma história de superação, fé, perdão, luta contra a injustiça, luta contra o preconceito racial. Uma história a favor da vida e da oportunidade de recomeço. A história impressiona, por ser relatada por quem sentiu na pele o preconceito e a injustiça. A narrativa do autor é fluída e consegue transmitir a mensagem a quem lê. Reforça em nós o anseio de que as injustiças que aparecem diariamente tenham de ser sanadas e que mesmo que saibamos que elas aconteçam hoje e que acontecerão amanhã, não podemos perder a esperança de lutar contra elas. Não podemos nos silenciar diante dos abusos e não podemos nos acostumar com as injustiças.

Sobre o autor:

Anthony Ray Hinton passou três décadas no corredor da morte injustamente. Libertado em abril de 2015, hoje advoga a favor das reformas penitenciárias e fala sobre o poder da fé e do perdão. Vive no Alabama, Estados Unidos. O Sol Ainda Brilhe é seu primeiro livro e foi escolhido por Oprah Winfrey para seu clube do livro no verão de 2018.

Ficha Técnica:

Título: O Sol Ainda Brilha
Autor: Anthony Ray Hinton
Tradução: Luis Reyes Gil
Editora: Vestígio
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-54216-25-4
Ano: 2019
Número de Páginas: 314
Assunto: Não ficção


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