A vastidão de fatos históricos e de lendas
folclóricas que permeiam o Brasil é imensa. No entanto, por vezes relegamos
esses fatos ao esquecimento. E, se não os esquecemos, deixamos adormecido no
recôndito da memória, valorando e recriando outros personagens que surgem na
cultura mais recente e tratando de temas históricos que enchem o noticiário. O
livro, objeto da resenha, nos traz uma trama de terror, que já começa com o
mérito de envolver aspectos históricos e recontar duas lendas folclóricas.
O Escravo de Capela, do cineasta e escritor
Marcos DeBrito, foi publicado pela Faro Editorial em 2017. A história
apresentada no livro se passa no ano de 1792, final do século XVIII, época do
Brasil Colônia. “O canavial esparramava-se pela vasta planície, estendendo-se além das
vistas, e muitos homens eram necessários para lavrar os incontáveis alqueires
de cana-de-açucar daquela terra que não parecia ter fim”. Os homens
necessários para lavrar o solo são escravos. A escravidão dos negros era
realidade e está tratada na obra.
O cenário físico em que se desenrola a
história é a Fazenda Capela, que tem Antônio Batista da Cunha Vasconcelos
Segundo como capataz responsável pelo trabalho na lavoura de cana. Antônio é a
representação de um homem violento, agressivo, frio, sádico e autoritário. Sua
sanha para agredir os escravos, por quaisquer que sejam os motivos, é cruel.
Vive empunhando seu chicote longo “com
cinco tiras de couro retorcido na ponta”.
Sabola Citiwala é um escravo recém-chegado,
que ainda não entende o português, que não conhece as regras impostas naquela
fazenda, mas que ao compreendê-las – da pior maneira possível – sente
um desejo premente de libertar-se da vida servil que lhe é imposta, das amarras
na senzala e da degradação humana. Homens são tratados como objetos, como meios
de produção, tão somente. Haja vista o que aconteceu com Akili Akinsanya, outro
escravo, que vive agora impedido de caminhar, recluso dentro das paredes úmidas
da senzala, uma vez que não serve para produzir, como anseia os donos das
terras. É, sem dúvida, num ambiente hostil para os negros, que a trama se
desenrola. Akili é chamado de Fortunato.
O que nos revela que para descaracterizar a individualidade, aos escravos que
chegavam na fazenda, outro nome lhes era dado.
A vontade da fuga, o açoitamento a cavar
feridas nas peles e a imposição desmedida do homem branco, tal qual o que
acontecia na realidade em que a narrativa está inserida, tornam a ambientação
perfeitamente crível a luz de sua época.
Além de Antônio, Sabola e Akili, o leitor vai
apreciar a história paralela de Inácio (irmão mais novo de Antônio, que foi criado
fora da fazenda e que retornou da Europa para passar um período próximo do pai,
depois de formar-se médico). Ele não concorda com o sistema empregado na
fazenda e se desentende com Antônio, enquanto o pai tenta ora apaziguar os
ânimos, ora seguir os conselhos que lhe parecem garantir mais dinheiro, ora
deixar com que se desentendam para que ele tenha algum proveito. O leitor
conhecerá ainda a história de Damiana, uma jovem escrava que atua na
casa-grande, ao lado de Conceição, sua mãe de criação.
Marcos DeBrito reconstrói, utilizando
elementos históricos e sobrenaturais, a figura de dois personagens do folclore
brasileiro. Um dos personagens que assume ares sobrenaturais, após sua morte
cruel, ressurge encapuzado, para protagonizar sua vingança contra aqueles que
fazem mal aos negros e que também lhe fizeram mal. Espalha, pois, o terror
originado pelo sobrenatural. No entanto, com maestria, o autor também nos dá
uma trama pautada no terror real, que está revelado na figura de Antônio e no
trato com os escravos. Temos então, duas vertentes muito bem traçadas no livro.
O escravo de capela, figura que vaga a
cumprir sua missão de vingança, está ainda em busca de seu membro inferior,
exposto como exemplo de punição aos demais escravos. Membro este, do qual foi
separado com a violência ultrajante impelida por Antônio, o carrasco filho do
proprietário da fazenda.
O autor construiu seus personagens com esmero.
O que também está garantido nas descrições das cenas, ambientes, ações e
sentimentos descritos, e que nos impossibilita de ficarmos impassíveis diante da
história que nos vai sendo revelada. Há surpresas, reviravoltas e uma trama
muito bem elaborada que nos conduz a um desfecho arrasador. Marcos tem um
estilo em que nos leva a imaginar os fatos que se seguirão e depois nos
apresenta uma reviravolta, que nos espanta e que está em total consonância com
a trama.
Destaco a constituição do personagem Antônio.
Tal figura tornou-se um dos mais odiosos personagens da literatura
contemporânea brasileira. Ele é um homem que sente o sadismo pulsar nas suas
veias, se apraz do sofrimento alheio, é violento, egoísta, ardiloso e capaz de
atos bárbaros com naturalidade. Um personagem para odiar. Isso é um grande
feito do autor, posto que transmite toda a vilania que emana daquele homem. É
impressionante que, até em cenas nas quais ele parece ser mais servil em
relação a seu pai, conseguimos detectar a forma velada como aceita o que o pai
diz e o contraste com o que fervilha no seu sangue.
Sabola, o protagonista, que torna-se alvo de
Antônio, é um homem valente, destemido, audaz, mas que carrega também certa
ingenuidade, fruto de sua inabilidade em lidar com a paciência e motivado pela
sua gana maior: safar-se daquele ambiente inóspito e de seus algozes. Sua
valentia, aliada a ansiedade pela liberdade, pode ser um ponto fraco aos olhos
dos outros. Sabola se revela um personagem pra lá de impactante, garanto.
O livro surpreende. Pega o leitor com
revelações finais que nos deixa boquiabertos. E as cenas finais são
arrepiantes. Ressalto ainda a forma com que Marcos DeBrito consegue tratar a
escravidão dentro da história sobrenatural. É chocante o modo com os escravos
são tratados, mas está clara a demonstração dentro do contexto histórico. O
mesmo contexto se aplica a outros acontecimentos que se revelam na família dos
Cunha Vasconcelos e na vida de outros personagens que passam pela Fazenda Capela.
O terror brasileiro tem excelentes autores
que vem ganhando destaque. Marcos DeBrito é, sem dúvida, um deles. Leitura
altamente recomendada.
Foto: Reprodução |
Sobre o
autor
Cineasta premiado, Marcos DeBrito vem sendo
considerado a grande renovação da produção de filmes de suspense e terror no
Brasil. Começou a escrever histórias que lhe vinham à cabeça apenas para lidar
com seus próprios medos, na esperança de esconjurar seus demônios e calar as
vozes que não o deixavam em paz. O destaque de sua produção está na crueza como
retrata as diferentes faces do mal, mas não é apenas isso. Todas as suas
histórias contêm elementos de mistério e surpresas que desafiam o público a
desvendar a mente dos personagens. Diretor, roteirista e escritor, O Escravo de
Capela é seu terceiro livro publicado. Condado Macabro, seu primeiro
longa-metragem foi lançado nas salas comerciais em 2015 e vem mostrando a força
de sua narrativa em festivais por todo o país e no exterior.
Ficha
Técnica
Título: O Escravo de Capela
Escritor: Marcos DeBrito
Editora: Faro Editorial
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-62409-89-9
Número
de Páginas:
283
Ano: 2017
Assunto: Literatura
brasileira
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