Novo livro de Vera Saad resgata política brasileira dos anos 90 para destrinchar traumas familiares - Tomo Literário

Novo livro de Vera Saad resgata política brasileira dos anos 90 para destrinchar traumas familiares

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Novo livro da escritora Vera Saad resgata o início dos anos 1990 para ilustrar a desestruturação de uma família afetada pela política econômica da Era Collor; a história também é atravessada por questões de abuso sexual e suas consequências
 
As cenas mais emblemáticas da política brasileira no começo da década de 1990 tem como protagonista o ex-presidente Fernando Collor de Mello. O jovem político alagoano ganhou os holofotes discursando — primeiro como candidato e depois como presidente eleito —, contra as regalias da classe política e do serviço público da época. O legado de caos econômico, social e político deixado pela trajetória meteórica de Collor na presidência da República são o pano de fundo do livro A face mais doce do azar” (Editora Claraboia, 136 pág.), novo romance da escritora paulista Vera Saad (@verah_saad), que também é doutora em Comunicação e Semiótica. 
 
Com um histórico de premiações em sua carreira com obras anteriores, seu quarto livro, que contou com mentoria da escritora cearense Jarid Arraes, foi contemplado pelo edital do Programa de Ação Cultural do Governo de São Paulo (ProAC/SP).
 
Segundo a autora, o livro mostra como a política afeta diretamente a vida das pessoas. “Não podemos simplesmente dizer que não gostamos desse tema. Tudo é política”, enfatiza. Vera argumenta também que a obra retrata uma época anterior a muitos avanços nas pautas relacionadas aos direitos femininos. “Vivenciei o mundo antes e depois do ‘não é não’, e sei do impacto que isso teve para as mulheres. Não conheço uma mulher com mais de 40 anos que não tenha sofrido abuso sexual, e o que é pior, sem ter consciência de que aquilo era um abuso”, revela Saad. 
 
Pautando política e trauma, obra discorre sobre temas por meio do olhar de uma pré-adolescente
 
“A face mais doce do azar” é narrado a partir das percepções de Dubianca, uma menina na pré-adolescência, inteligente e sensível. No começo da obra, a garota, também chamada de Dubi ou Bianca, vive na pele os desacertos da política econômica brasileira ao precisar se mudar, junto com os pais, para o porão da casa dos tios após a família perder a estabilidade financeira e com ela a moradia.  
 
O novo endereço marca o início de uma fase complexa e intensa na vida da menina. Os anos seguintes seriam um microcosmo da ebulição em que o país vivia. Dubi vai vivenciar o surgimento das desavenças entre seus pais e tios, o movimento de aproximação e afastamento da prima com quem convive, a descoberta da atração sexual, os desafios de tornar-se mulher numa sociedade machista, além de se embrenhar no mistério que envolve seus vizinhos e o trauma de perder uma pessoa próxima. 

O adolescer também é um dos assuntos em alta na obra. No livro, Vera nos apresenta uma protagonista cativante, por vezes ingênua, cuja abundância de vida passa a murchar, pancada após pancada, e que compartilha conosco, de modo íntimo, seus pensamentos conflituosos e a doçura fugitiva da sua adolescência. Dubi poderia ser muitas de nós, meninas e mulheres, invisíveis entre adultos e homens que miram seus olhares para o que julgam mais importante – ou mais explorável. 
 
Entre os inúmeros méritos de “A face mais doce do azar” está o de resgatar os anos de 1990 da memória de quem vivenciou o período ou apresentá-la aos nascidos no século 21. Em especial, retratar o aspecto político daquela década e mostrar que os humores da população em relação à política já apontavam em divergências e estranhamentos. No livro, essa polarização é incorporada pelos adultos da trama que se digladiam com visões opostas e conflitantes. Os fatos narrados na obra, como a eleição, debates e ações do governo são verídicos, e detalhados com exatidão. A escritora exerce aqui um papel didático e pedagógico. 

Para a ficção, Vera relegou uma vertente da trama que flerta com uma realidade vivenciada por milhares de brasileiros na época e retrata a dimensão emocional do congelamento das poupanças. Reportados pela mídia ou contados a “boca pequena”, sob vergonha e sigilo, há centenas de relatos de pessoas que foram afetadas mentalmente pela ação governamental e das que tiraram a vida por conta disso. No livro, um dos personagens que orbita a vida da menina, desaparece sem deixar rastros, vítima da desestruturação econômica provocada pelo governo. 

Além de política e governo Collor, Vera elenca também como temas do livro família e abuso sexual. “Como o livro trata de uma família, pensei que a menina é sempre o lado mais frágil da corda. Quis dar voz a essa garota, seria a vez dela de contar a própria história”, argumenta a autora.  Há uma sutileza na inserção do assunto ao mesmo tempo que a escritora consegue criar uma atmosfera de tensão crescente entre as duas personagens envolvidas no ato. O livro retrata ainda o efeito devastador que essa perversão causa na vida de uma pessoa. 

Dados os assuntos delicados que a autora se propõe a mergulhar em “A face mais doce do azar”, a obra poderia tornar-se uma ode a desolação e maldades do mundo. No entanto, ao chegar à última página do livro, o efeito parece outro, há uma exorcização do mal-estar provocado pelos anos de 1990. É como se esses mais de trinta anos que nos separam daquele início de décadas conseguissem decantar as agruras vivenciadas e proporcionar uma espécie de cura que não significa esquecer o que aconteceu, mas seguir em frente apesar de tudo. 

De leitura fluida e envolvente, “A face mais doce do azar” é uma oportunidade para que gerações mais recentes conheçam uma parte marcante da nossa história, e melhor, pelos olhos de uma garota. Pela visão de quem vê seu mundo desmoronar e não sabe em quem confiar. 

Vera Saad / Foto: Divulgação


Uma trajetória premiada: conheça a autora Vera Saad

Vera Saad é natural de Ourinhos, interior de São Paulo, mas cresceu e vive atualmente na capital do estado. É formada em jornalismo pelo FIAM-FAAM Centro Universitário, mestre em Literatura e Crítica Literária e doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). A trajetória literária da escritora começa ainda nos anos de 1990 quando vence o concurso de contos Sesc On-line em 1997, avaliado pelo consagrado autor Ignácio de Loyola Brandão. A escritora foi ainda finalista do VI Prêmio da Jovem Literatura Latino-Americana com o romance “Estamos todos bem”. 

Mais recentemente publicou o livro de contos “Mind the gap” (Patuá, 2011), e os romances “Telefone sem fio” (Patuá, 2014) e “Dança sueca” (Patuá, 2019), que ganhou menção honrosa no Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE/RJ).  A autora também mantém uma coluna na Revista Vício Velho.

A ideia para escrever “A face mais doce do azar” surgiu em 2018, diante do contexto das eleições presidenciais no país, além de ter influência da literatura. “Estava na época lendo ‘Complô contra a América’, do escritor norte-americano Philip Roth, e pensei em como o que vivíamos era semelhante com o que lia, sobretudo a ascensão da extrema direita”, relata a autora. Vera ainda relacionou aquele momento com o período experienciado nos anos de 1990. “Tínhamos uma realidade parecida com a eleição de Collor, me fez lembrar do caos instaurado com o Plano Collor, parecia uma distopia, mas era real”, pontua.

Apesar de ter iniciado a escrita em 2018 o livro só foi concluído alguns anos depois. Nesse tempo, a autora recebeu, como já mencionado anteriormente, a mentoria de Jarid Arraes. “Quando comecei esse processo com ela não tinha nem 40 páginas, das quais 20 foram deletadas”, relembra. A obra foi então contemplada pelo edital do ProAC/SP, o que fez a autora acelerar o processo de escrita. “Terminei o livro no dia da posse do Lula, sempre acharei a data significativa”.
 


Confira um trecho do livro “A face mais doce do azar”, de Vera Saad: 
 
Continuava soltando gritinhos, “Eu dei, eu dei”, o corpo se contorcia, em movimentos curtos, braços soltos, voo sem direção. A lua chegava ao quarto pela fresta da cortina. A pele brilhante de Maira sob aquela coreografia me convidava a sapatear os últimos dias da década de 1980. Demos as mãos e giramos com a garrafa de Keep Cooler entre elas. Keep Cooler de cereja, Halls de cereja. Caí na cama. Foi quando ouvimos nossos pais entrarem em casa munidos de inseticida. Últimos dias da década de 1980, cheiro de cereja e inseticida. Voz de Lula e Collor. Voo sem rumo de Maira e de baratas voadoras. Nosso azar suspenso sem que soubéssemos. 

Quando eu era mais nova, antes de nos mudarmos para minha avó, uma cena havia me marcado no prédio em que morávamos. Estava no pátio com amigos. Vi minha mãe no portão com compras e corri para ajudá-la. Ela me chamou de canto e então segredou que acabara de ouvir que o pai de uma das crianças que brincavam no pátio sofrera um acidente de carro e falecera. A filha ainda não sabia. Olhei para a menina, brincava com todos, ria com um, xingava outro, seguia a brincadeira. Aqueles eram os últimos minutos em que ela brincava daquela forma. Últimos minutos em que era criança daquela forma. Ela brincava, ria, xingava sem saber que em alguns instantes perderia a graça, o riso. Perderia a inocência, aquele sopro leve que nos afasta da matéria bruta de que somos feitos. 
 
Adquira “A face mais doce do azar”, de Vera Saad, pelo site da editora Claraboia:

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