Enterre
seus mortos, livro de Ana Paula, foi publicado pela Companhia das Letras em
2018 (136 páginas).
No
livro nos aventuramos pela história de Edgar Wilson, que trabalha no órgão responsável
por recolher animais mortos em estradas e levá-los para um depósito em que são
triturados num grande moedor. Uma imagem atordoante.
“Observava diariamente a
vida evoluir para a morte. Para ele, estar na presença de um cadáver os deixava
um passo atrás da morte, como se ela não pudesse alcançá-lo, pois assim como o
fluxo da vida segue sempre em frente, também o da morte avança.”
Edgar é definido como um
homem simples que cumpre suas tarefas. Para além disso, não há descrições
minuciosas sobre suas características, tampouco são apresentados fatos de seu
passado ou os pensamentos que o tomam. O que torna Edgar Wilson um personagem
com caracterização universal, que poderia representar qualquer um de nós ou
nenhum de nós. Ele é o que é. E tal forma de apresentar o personagem diz muito
sobre ele, quando avaliado em contraponto com outro personagem que com ele
atua.
Esse outro personagem é
um colega de trabalho, um ex-padre que foi excomungado da igreja católica e que
distribui extrema unção às vítimas de acidentes com que acaba cruzando quando
da realização de seu novo trabalho. Tomás é seu nome. Esse vem com um passado
revelado e características comportamentais que são reveladas em suas ações.
A rotina de Edgar
Wilson, que segue morna no resgate de animais mortos nas estradas, é alterada
quando ele se depara com o corpo de uma mulher enforcada dentro da mata. Aquele
corpo não pode ser desprezado e ele acaba por carregá-lo ao local onde guardam
os corpos dos animais, já que o departamento encarregado de transporte de
corpos de humanos não tem recursos para atender a demanda que surge. Enquanto
leitores somos tomados pela premente sensação de abandono e vemos uma camada
que trata do desaparelhamento do estado.
Os dois personagens
transitam entre o humano e o animal. Este último recebe sempre o melhor
tratamento quando a presença da morte se confirma. Os dois homens não se chocam
com o fim da vida, nem de um, nem de outro. Ambos recolhem os animais com
naturalidade tal qual o fazem com o processo de moedura dos restos desses
animais, mas sentem a necessidade de fazer com que os corpos humanos não fiquem
abandonados, enquanto bichos diversos poderiam devorá-los e a podridão se
aproximar.
Notamos na narrativa
que, mesmo com a frieza com que recolhem os corpos dos animais, os homens não
se endurecem a ponto de desconsiderar o lado humano. Situação que parece tomar
toda a sociedade em que estão inseridos.
“_Quando o assunto é
remover seres humanos, nós não podemos fazer nada.”
Os corpos humanos quase
nunca ou nunca são atendidos de imediato, não há recursos para removê-los,
alguns parentes não os reclamam, o corpo morto encerra a vida e parece virar apenas e tão somente um estorvo.
Por outro lado, os corpos de animais são rápida e eficientemente recolhidos dos
locais em que morreram. Que importância tem o ser humano nessa sociedade? Eis
aí uma questão que a história contada no livro nos leva a refletir.
Wilson é sempre
preocupado em recolher o corpo físico, enquanto Tomás, o ex-padre, que poderia
seguir uma vida de abalo em sua relação com a fé, acaba por praticar a extrema
unção nos corpos que encontra, como que consagrando sua fé, mesmo tendo sido
afastado de sua atuação na igreja pela prática de alguma transgressão no
passado. Se um se preocupa com o corpo físico, o outro leva em consideração o
corpo espiritual. Seria a necessidade de praticar o sacramento uma maneira de
resgate da sua própria fé? Se a igreja o desconsidera como uma pessoa capaz de
levar o conforto que a própria igreja prega, ele parece revestir-se dessa
função fora da configuração religiosa.
A obra tem uma aparente
superficialidade, com uma narrativa ágil, uma história que prende a atenção,
passa por momentos que nos atordoam e tem uma dinâmica que leva o leitor a
devorar as páginas. Talvez alguns leitores, menos afeitos a cenas que podem
causar arrepios, segurem-se para absorver o conteúdo. Contudo, não se engane, é
nessa aparente superfície que há a profundidade da história construída por Ana
Paula Maia em revestidas camadas que estão lá, basta o olhar atento para
observá-las.
Ao criar uma história
bizarra que se distancia da realidade, o contraponto que é feito no livro sobre
tratar o animal e o humano nos choca. Pode ser paradoxal, no entanto, notamos
que esse distanciamento que há entre o homem que trata a morte dos animais com
eficiência, enquanto abandona o humano, se refaz nos dois personagens
removedores que, cientes de sua função da remoção dos corpos dos animais, são
incapazes de abandonar os corpos de seus semelhantes.
Note que, as pessoas
mortas que recebem alguma condolência de Wilson, são pessoas a ele
desconhecidas. E, nem por isso, ele deixa de exercer o ato da compaixão ao
querer lhes garantir um fim digno, sob pena de receberem alguma punição, pois é
claro que a atividade que devem exercer é exclusiva de remoção de corpos de
animais mortos e sua trituração. Não cabe a remoção de corpos humanos no limite
imposto por sua atividade profissional. Deve
o ser humano se limitar ao exercício de suas funções? É ético menosprezar o
corpo morto de um semelhante?
Um senso de humanidade
toma os dois personagens, Wilson e Tomás, que se preocupam com o destino dado
aos corpos de outros humanos. Veja-se o que acontece quando eles tentam levar
os corpos e há desencontros, impossibilidades, obstáculos, o que demonstra a
precariedade do serviço público prestado naquele local, a defasagem de
recursos, o plano secundário que a morte do corpo humano representa. Sem
importância, poderíamos afirmar.
Mesmo diante de uma
situação vexatória, os dois personagens, sobretudo, Edgar Wilson, se vê imbuído
de tentar enterrar esses corpos. Ele dá o tom de uma moralidade e de uma
responsabilidade que eles assumem, mesmo sendo contra o que mandam seus
superiores, mesmo não havendo lei para determinar que eles façam tal serviço.
Vão além de suas tarefas rotineiras para assumir uma posição de
responsabilidade.
Edgar parece estar em
busca de algo que não é só para ele. Talvez, nos seus atos, esteja contida uma
compaixão pelo ser humano, como se ele pudesse, de alguma forma, diminuir a dor
do abandono. Ele, sem manifestar-se tão efusivamente, procura pela irmã da operadora
de telefonia que envia a ele os serviços de resgate de corpos de animais.
Os dois homens,
acostumados com uma situação de precariedade e animosidade, poderiam ser
consumidos pela condicionante e repetitiva tarefa de recolhimento de restos de
corpos de animais. Mas não, eles não se deixam tomar por algo que pode causar
repugnância a qualquer outra pessoa.
Interessante observar
que as rodovias pelas quais circulam os personagens não são nomeadas. Tomam,
portanto, a imagem de quaisquer rodovias que podemos ver pelo interior dos
estados brasileiros. Essa descaracterização possibilita ao leitor posicionar a
história em qualquer canto do país. Outrossim, vale dizer, que a localização,
na história, é menos importante do que o cerne da discussão: o tratamento que se dá ao ser humano na morte.
Magistralmente Ana Paula
faz um jogo de aproximação e distanciamento da realidade que leva o leitor a
mergulhar num universo de contestações, críticas sociais, indefinições e
subjetividades que ganharão corpo na leitura singular que é dada por cada
leitor. A obra nos conduz por um processo de degradação humana com nuances de
restauração, dentro do limite que é possível aos homens que protagonizam a
história.
Sobre a autora:
Ana Paula Maia é
escritora e roteirista. É autora de sete romances, destacando-se Entre rainhas de
cachorros e porcos abatidos, Carvão animal, De gado e homens e Assim na terra.
Seus filhos foram traduzidos na Sérvia, Alemanha, Argentina, França, Itália,
Estados Unidos e Espanha. Possui contos publicados em antologias no Brasil e no
exterior.
Ficha Técnica
Título: Enterre seus mortos
Escritora: Ana Paula Maia
Editora: Companhia das Letras
Edição: 1ª
Ano: 2018
ISBN: 978-85-359-3057-2
Número de páginas: 136
Assunto: Ficção brasileira
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