Lu Ain-Zaila lança pela Monomito Editorial o livro Ìségún, uma obra de afrofuturismo cyberfunk. A pedagoga e escritora falou ao Tomo Literário sobre o começo de sua jornada no meio literário, a ideia que permeou a criação do seu mais recente livro e ainda abordou a conceituação sobre o afrofuturismo cyberfunk.
A autora nos fala ainda sobre a Duologia Brasil 2408 e Sankofia, livros que publicou anteriormente e não deixou de comentar sobre o seu processo de escrita. Abordamos também o mercado literário afrobrasileiro.
Política e estudiosa, Lu nos chama a atenção para a construção da literatura que se faz nas periferias e subúrbios, além de ressaltar a necessidade de conhecer a história do país.
Tomo Literário: Como e quando você passou a atuar como escritora?
Lu Ain-Zaila: No caso da literatura de ficção, oficialmente em 2015. Mas tenho um histórico no blogspot usando esse nome, da época que fazia dança (2011-2014). Já antes desse período com poesias, tinha uma página no Recanto das Letras. E claro, não posso deixar de mencionar “O Caminho Sankofa de Nande” que inscrevi num concurso sobre a Lei 10.639/03 (História e Cultura Africana e Afrobrasileira) e fui selecionada para publicação (2007) numa revista em SP, a Eparrei.
Tomo Literário: De onde surgiu a ideia de escrever Ìségún, que será lançado pela Monomito Editorial?
Lu Ain-Zaila: Bem... me passam muitas ideias pela cabeça, anoto todas e não tenho como dar conta, pois não sou só escritora, a vida cotidiana chama. Sinceramente, não tenho um cronograma do que seria uma ideia maior ou menor. A coisa acontece conforme vou adicionando mais elementos.
Ìségún foi assim, eu estava pensando numa história mais periférica, anotando o que gostaria de trazer a ela, comunidades, música periférica... e daí veio o pensamento das dificuldades que vivemos, o problema do lixo, as enchentes, a poluição, como tudo isso é naturalizado e então é só liberar o FGTS para que comprem de novo, como se isso resolvesse tudo, problema de vocês.
Porém a coisa não é assim, é cíclica e em meio a isso saltou em minha mente a lembrança de uma mitologia e é incrível como ela casa com a realidade periférica e então o livro foi rastilho de pólvora, as conexões e as metáforas foram se engendrando e o livro saiu em poucos meses. Adoro o que ele nos conta e como fiz certas amarrações.
Tomo Literário: Conte-nos sobre o conceito do afrofuturismo cyberfunk.
Lu Ain-Zaila: A mudança já começa no ritmo, eu trago o samba, o rap, o Jorge Aragão dizendo pra não ir pelo elevador de serviço não. O caos negro é moderno desde sempre, arrancados da vida para a prosperidade de outros, ou seja, no Afrofuturismo negros e negras são o Eu, a voz, nossas tensões são raciais e todo o dia provam isso na diferença de tratamento, nos dados, no valor da vida e quem estão aptos a sacrificar pelo extrativismo, um novo shopping, um complexo industrial poluente, no caveirão que passa por cima, os recortes são visíveis e não há um lamento por isso, não se vestem de branco por empatia.
E o cyberfunk trata disso, a tecnologia do afrofuturismo é a raça, ela sempre foi político-social e deve ser lida, compreendida na linha do tempo da humanidade como mecanismo de acumulo de capital, sem descobertas de terras, mas colonização massiva e sendo assim, gambiaras em postes, consertos de eletrodomésticos e alta tecnologia são um adendo no contar histórias sobre pessoas negras. Sempre tem a ver com elas, os altos e baixos da modernidade e do futuro ao redor de suas vidas.
Tomo Literário: Você escreveu a Duologia Brasil 2408 e Sankofia. Fale-nos um pouco sobre esses trabalhos.
Lu Ain-Zaila: A Duologia, (In)Verdades e (R)Evolução é especial para mim, pois nela estão vazantes do que queria ler num livro e nem sabia em totalidade até se tornar real: a família negra, os laços familiares, o exemplo, a mitologia lida no urbano, a estética do corpo e do cabelo colocada de forma afirmativa, orgulhosa, a voz que aglomera, a poética e a empatia em contar a realidade com certas mudanças de lugar. Adoro o processo da Ena nos dois volumes, as certezas que caem, a força que tira de seus laços e de si. A carta do pai é muito linda, o discurso dela idem. São tantas nuances para se debruçar neste livro que não tem como especificar. E em 2020, (In)Verdades faz 5 anos de imaginado, pensado, ainda não publicado, mas já fazendo a sua diferença em mim. E isso será comemorado.
Já Sankofia foi uma ideia louca e ao mesmo tempo importante, eu estava com várias inspirações na cabeça que tinham cara de conto, a maioria por finalizar, mas latentes e insistentes, do tipo, preciso escrever isso e isso e isso... tudo num livro só.
No conto A Era Afrofuturista que é mais pedagógico, didático e ao mesmo tempo uma introdução ao pensamento afrofuturista (gratuito no meu site). Nele, deixei várias ideias abertas (............................), introduções para jovens e adultos desenvolverem ou irem além, pois um movimento deve instigar, entendo assim e precisamos disso.
O que imaginei ali foi colocar na pauta várias conexões especulativas e periféricas, mitologia e ancestralidade. Tem horas que acho muito louco, escrevi em meses e enfim tive um pouco de paz, joguei aquelas inquietações no mundo e sou feliz demais pela recepção do livro que foi produzido graças a financiamento coletivo.
Tomo Literário: Como você tem visto mercado literário afrobrasileiro?
Lu Ain-Zaila: Ele está se construindo, as novas possibilidades midiáticas e dos processos de produção tem preço e estamos no parcelado, mas fazendo e insistindo. A Flip nos últimos 2 anos teve uma potência no alternativo, vi em 2018 como agradou e trouxe muita gente nova ao evento, a Bienal de Contagem é um outro belo exemplo, apesar de não estar nela (Ahhhhh!). Já na Bienal pouco mudou, é mercadão mesmo, mas aí entra a nossa capacidade de construir outros espaços, forma de escoar livros e editoras que tratem a nossa voz com respeito, entenda o processo. Foi muito relax trabalhar com o Toni da Monomito, tive receptividade.
E é importante falar dos movimentos periféricos por literatura com eventos, revistas, editoras, prêmios. Estamos pegando o jeito e cada vez mais vemos a diferença, pois independente do quadro atual, resistir é verbo e pão, sonhar é dar fim à fome e estamos nessa linha. Não perco a chance de falar de eventos literários produzidos nas periferias e subúrbios, a coisa está ficando boa.
Tomo Literário: Como é o seu processo de escrita? Costuma preparar materiais antes de iniciar história, como fichas de personagens e roteiro, por exemplo, ou ele é mais intuitivo?
Lu Ain-Zaila: Nesse quesito, quando alguém acha o meu processo louco, recorro a um vídeo da Conceição Evaristo (Ocupação Conceição Evaristo), um outro gravado no Amarelinho/RJ e também a um texto da Nnedi Okorafor. Tenho conexão com o processo de ambas, a vida inspira, a coisa é meio psicografada, nem tudo sei explicar, acredito que a ancestralidade está nessa mistura e então um estalo, começo o livro no papel, faço notas, puxo setas, faço desenhos tortinhos dos ambientes, vejo mapas, previsões climáticas, dados sociais, debates, mas nada de ficha de personagem. E a coisa vai sendo refinada no escrito e no rabisco, das lacunas às sacadas, simples ou complexas, mas é assim mesmo, gosto de descrever o cotidiano da ficção e então os ajustes vão sendo feitos, a ideia vai sendo estruturada, reescrita e vai tomando o seu lugar.
Eu sou como uma telespectadora descrevendo o ambiente, a voz das pessoas, pensando a política e a história ao redor, tem um processo intuitivo aí sim, meio soprado pela ancestralidade e também de uma leitura extensa para embasar o afrofuturismo à brasileira, no literário e conceitual. Esse ano estive na UFBA apresentando minha visão de arquétipos, os primordiais e isso é de extrema importância. No popular é “dar a linha” do pensamento afrofuturista que é negro e deve ser pontuado por nós, outros vão falar, opinar e isso é ótimo, mas a linha é negra e isso não é tema de debate.
Tomo Literário: Está lendo algum livro agora? Quais você recomendaria aos leitores?
Lu Ain-Zaila: Li Derek Walcott, Omeros (1990), uma surpresa emprestada, uma ficção-poema de centenas de páginas sobre uma ilha de pescadores no Caribe, li O Poder da Naomi Alderman, parei A Quinta Estação, parei Binti em espanhol e para compensar li muita mitologia africana, dei meu jeito com o inglês e aprendi muita coisa. As leituras atrasadas e anotadas como desejadas vou retomar no final de ano, pois no processo de escrita não gosto de ler livros de ficção e vejo pouca TV, nem sei no momento o que tá rolando na Netflix, estou por fora bonito. Assisto uma coisa ou outra, mas prefiro descansar meus cinco graus ouvindo música, canso dos pixels e polegadas. E no meio disso fazer um freela, visitar escolas, escrever um texto, estudar.
Ah sim, indico Octavia Butler, mas para além, os textos de Samuel Delany (traduzi Racismo e ficção Científica), os escritos críticos de Nnedi e Jemisin, vejo pouco interesse e é exatamente o que faz a escrita delas. Isso é pra pensar, porque esse recorte acontece? E indico também a tradução do discurso da Jemisin em 2018 no Hugo Awards, disponível no site Momentum Saga da Lady Sybylla. Tem a mulheres incríveis Ira Croft, Beatriz Santos e Cia. do Ponto G, site Preciosa Madalena.
Pensar faz parte da escrita e o meu site, eu indico também.
Tomo Literário: Quais são os escritores e escritoras que, de algum modo, influenciaram o seu trabalho como escritora?
Lu Ain-Zaila: Eu sempre digo que inicialmente eu tenho mais pensadores negros que escritores como influência, chegaram primeiro, fazem a base da minha literatura: Cheik Anta Diop é fundamental reconhecer a sua trajetória, Lélia Gonzalez, Guerreiro Ramos, tive a sorte de ter contato com Abdias, Carlos Moore está por aí... conheci o COPENE, movimento de mulheres negras, estudo a história negra, jornais de todas as épocas, os relatório da Comissão da Verdade na ditadura também são importantes. Sou política, não existe muro na escrita.
Meu processo é diferenciado desse jeito, pois nunca tive a literatura ficcional como algo efetivo na vida, sou da época da tela verde, DOS, internet era luxo assim como linha telefônica e estamos falando de 20 anos atrás, curioso pensar nisso e olha só onde estou, todos estamos. Gosto de 1984, F. 451, mas Conceição Evaristo e sua literatura periférica fazem a diferença (tese de doutorado idem, da Sueli Carneiro e Cida Bento também), Carolina é certeza. Li muita coisa emprestada da estante do PROAFRO na UERJ enquanto cursava Pedagogia, li o Jornal Irohin e por isso não sei pontuar, mas a poesia, o samba e o rap também tem o seu lugar didático na minha construção e eu trouxe isso para o Iségún.
Tomo Literário: Algum projeto novo sendo preparado? Pode nos adiantar alguma informação?
Lu Ain-Zaila: O projeto que tenho no momento é pessoal, vou segurar a língua até virar o ano. E no âmbito da literatura tenho anotações de dois livros de faixas etárias diferentes, ainda no processo de devaneio das possibilidades, então não tenho muito a contar agora, nada mais concreto.
Tomo Literário: Há algum assunto que não tratamos e que você queira falar?
Lu Ain-Zaila: A importância de reconhecer a história do Brasil, não fingir que isso ou aquilo não aconteceu ou começou outro dia, nada no Brasil é de ontem ou anteontem. Não se deixe levar pelo zap zap do familiar ou vizinho que não tem nada útil pra fazer, corte o que te faz mal sem dó, dê unfollow nos desinformados, agressores.
Faça o dever de casa de se informar, adoro isso, indicar onde pesquisar isso e aquilo, não acredite em quem age na rede como inventor da roda de temas já colocados uma e outra vez. Sempre insista no “por quê?” e “de onde você tirou isso?” - são perguntas libertadoras e revelam a verdade sobre as pessoas. Temos que parar de achar que más condutas são ranzinzas, a maioria é simpática até você discordar e pedir referências. Os Sorrisos Estéreis de quem tanto falo... são esses e essas, aparentemente normais.
Tomo Literário: Quer deixar um comentário para os leitores?
Lu Ain-Zaila: Primeiramente, obrigada por estarem gostando de meus escritos e do que falo vez ou outra fora desse âmbito. Isso é o ganho da literatura, inspirar, receber mensagens de agradecimento por uma escrita representativa é o que gosto, além de visitar escolas e contar histórias, falar da importância da educação e literatura na capacidade empática das pessoas.
Para quem ainda não conhece as minhas obras, convido a ler meus escritos ficcionais e fora do âmbito, ambos são legais e se complementam.
Acredite no sonho árduo, pois não existe o fácil.
E finalizando... Obrigada a todas e todos!
Links indicados:
Discurso da Jemisin no Hugo Awards em 2018.
Racismo e Ficção Científica por Samuel R. Delany (traduzido)
Ponto G – Preciosa Madalena
convolXarre_1983 Kenneth Shamburger https://wakelet.com/wake/nJskBcHWkbW6WWP1IPfe5
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