Por Alexandra Vieira de Almeida
No livro de crônicas Conversa comigo (Penalux, 2019), de Ricardo Ramos Filho, temos um escritor que busca por problematizações, observando o real com olhos críticos. Trazer o terreno do cotidiano e trivial para a análise linguística da crônica a partir da densidade dos problemas da vida, eis a grande chave mestra do viés literário deste autor admirável que apresenta um livro maduro e repleto de questões político-sociais e artísticas. No E-Dicionário de termos literários, organizado por Carlos Ceia, temos o verbete crônica analisado por Annabela Rita, que propõe: “Inicialmente, a crónica, mais geral ou mais popular, registrava acontecimentos históricos ou por ordem cronológica. Fonte mais directa e imediata de conhecimento histórico, comportava também fatos menos relevantes, informação secundária que a História moderna tenderá a elidir”. Dessa forma, temos um paradoxo em sua obra, que embasa o próprio teor da crônica mais substancial, ou seja, tornar fatos do dia a dia como algo de grande importância. Já tivemos o instigante livro do pensador italiano Nuccio Ordine com seu livro A utilidade do inútil. Criticando o teor mais pragmático e útil do que seria o poder do capital, o que tem uso comercial, Ordine fala de saberes, que seriam considerados inúteis para a estrutura dominante. Podemos pensar em nosso país, numa época em que temos o corte de verbas para universidades e colégios e o desinteresse pelo conhecimento crítico, levando-nos ao colapso do sistema educacional. Renato Ramos Filho faz de algo ordinário um movimento para a beleza das coisas mais significativas, revelando a relação entre o útil e o inútil. As ciências humanas, as artes, por exemplo, adquirem valor e podem ser sim úteis para a atitude crítica e reflexiva de toda a humanidade.
Mas pensar, proliferar os discursos, torná-los decifráveis para todos é o grande desafio deste escritor excepcional. Assim temos na epígrafe do seu livro o pensamento do filósofo Michel Foucault, afirmando o que temos dito anteriormente: “Mas, o que há enfim, de tão perigoso no fato das pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?” Na crônica que abre o livro, “Conversa comigo”, temos o dom da narrativa, de contar histórias e segredos na vida cotidiana de cada um, pois a literatura é o melhor remédio para a solidão e o silêncio. O diálogo é aplaudido, é a busca da personagem desse texto. Dessa forma, encontramos, no interior do carro um casal, em que a mulher procura a palavra, a fala, a qualquer custo. O poder de comunicação é o norte para ela. Dessa forma, começa a crônica no meio do silêncio no carro do casal: “− Conversa comigo, diga alguma coisa”. A verbalização é necessária como um sopro de vida. Há a exploração do verbo, da palavra, como parte indispensável do viver. O filósofo Nietzsche já dizia sobre o horror ao vácuo. A esposa não tolera o nada, o que está à beira do abismo das palavras, busca o outro na sua comunicabilidade e preenchimento do caos interior. Só que o assunto particular e regional, o futebol de São Paulo, que o marido discute, ganha ares de importância universal, dando um grande gancho para se discutir sobre o social e a situação no país do futebol que valoriza o capital assim como em qualquer parte do mundo, um prazer então utilitário para a maioria. Só que o final da crônica é surpreendente, pois há uma interrupção da narrativa futebolística para a despedida do casal em seu tom amoroso.
Na crônica “Macaco-prego”, temos o hibridismo entre o intelectual e o sentimental, pois a presença da música nacional é marcante, fazendo do narrador-personagem, que é alguém inteligente, gostar de músicas sentimentalóides e cafonas: “...embora batalhe para ter um paladar estético um pouco mais evoluído, sou capaz de gostar com alguma liberdade de coisas não tão recomendáveis e certamente de gosto duvidoso”. O intelecto e o sentimentalismo são a ponte entre o pensar e o sentir. Isso não seria um equilíbrio do ser para que a intelectualidade não engesse o coração? É uma questão apresentada por essa crônica maravilhosa que nos instiga a partir de nosso dia a dia, de nossa relação com a realidade. Outro fator importante na obra deste cronista é a reflexão lírica, reunindo o criticismo e a poesia. Vejamos: “E a quase ausência de automóveis nas avenidas transmite uma impressão de profundidade inusitada.” Temos assim o casamento perfeito entre crítica social e a finura poética, a faca cortante que sangra e a delicadeza da flor perfumada. Nesta crônica, a partir do rádio que o narrador-personagem no carro escuta, temos a beleza de nossa terra, de nossa gente. O que é regional se torna grandioso e global, trazendo as questões e reflexões do cronista para o terreno da literatura. Encontramos essa grandiosidade do Nordeste através da escuta no rádio da nova faixa, Elba Ramalho: “O sotaque nordestino tem a capacidade de despertar memórias atávicas”. Vivenciamos também nos seus textos a mistura entre o urbano e a natureza, um canto à cidade refletida nas coisas naturais. Numa mesma crônica temos o peso filosófico do pensamento crítico e a leveza da poesia mais graciosa. No final do texto, um movimento de ilusão e desilusão, pois o narrador-personagem se confunde ao ver um macaco-prego, sendo que na verdade ele é algo diferente. Temos na tradição oriental esse mistério de maya, a ilusão, pois podemos confundir a cobra com a corda. É uma visão desfocada, o quanto a percepção nos engana, os sentidos nos absorvem numa areia movediça, pois segundo o filósofo Platão, os sentidos nos enganam.
Na verdade, a grande personagem no seu livro é São Paulo, onde temos uma crônica no livro com este título. Temos um retrato dela, como numa fotografia revelada pelo narrador-personagem. O local lhe traz dúvida e ambiguidade, num misto de amor e ódio, de prazer e rejeição. No belíssimo prefácio do escritor Edmar Monteiro, ele diz: “Ao longo das quarenta e quatro crônicas que compõem o livro, mesmo quando não é explicitamente mencionada, a cidade frequenta a conversa fluida de Ricardo Ramos Filho”. O narrador-personagem vai dialogando com a cidade, ao mesmo tempo em que dialoga com o leitor. Temos, aqui, a cidade que acolhe, que violenta e agride. E para isto há um motor para suas lembranças da infância, um tempo em que não era assim como hoje. Uma espécie de idílio ou paraíso é posto no passado, com suas recordações, comparando o presente e o passado. As crianças com a tecnologia perdem o gosto pela natureza e pelas brincadeiras saudáveis. A necessidade delas é essa mesma tecnologia, fazendo-as respirar os computadores. Ricardo Ramos Filho vai descascando as camadas da cidade como uma pele, um tecido a serem descobertos e desvendados pela pena firme do cronista.
Na crônica “Leilão”, temos o contato com os familiares de Ricardo Ramos Filho, neto do tão prestigiado autor Graciliano Ramos, um dos maiores nomes da literatura brasileira. A primeira edição autografada do livro Vidas Secas seria leiloada. Na dedicatória, o seguinte: “Para seu Américo, um abraço; Graciliano Ramos Rio – 1938”. Este autógrafo seria o leitimotiv para o escritor falar de suas férias no Rio de Janeiro com vários familiares: “Vovô Américo, sogro de Graciliano, pai de vovó Heloísa, mulher do escritor alagoano, e também de minha tia-avó Helena, era uma velhinho querido”. Ele era um grande contador de histórias, contava para Ricardo vários relatos. A questão da oralidade é enaltecida e, a partir daqui, temos o empuxo para que Ricardo Ramos Filho se tornasse escritor: “Os relatos ouvidos ali, tenho certeza me fizeram querer ser escritor mais tarde”. Nessa crônica, podemos vislumbrar a junção entre o verídico e o ficcional, pois no final do texto temos o poder de efabulação da crônica e sua força de imaginação, que veremos mais adiante. O neto de Graciliano Ramos resolve ir ao leilão, dando um lance inicial de 3.000,00, o que seria muito para ele. Aqui, nesse texto, revela-se o poder do capital e sua força aparentemente útil, sendo o livro vendido para além do valor inicial. Só que para Ricardo, esta relíquia do avô teria outro destino, mais útil para todos, uma doação para a humanidade: “Caso conseguisse aquele volume, ele teria o destino de todos os outros livros autografados da família, o IEB – Instituto de Estudos Brasileiros”. Seria algo importante para os estudantes e pesquisadores da obra. O seu poder de utilidade é formidável, diferente do discurso egoísta do valor monetário. Mas no final da crônica, somos levados pelo escritor por uma vingança literária. Aqui, temos o poder da imaginação do cronista, engendrando uma hipótese do que teria acontecido com o livro nas mãos do novo conquistador dele. No meio de algo verídico, a força de efabulação do texto. Assim perguntamos, há limites entre o real e o ficcional? Há intercâmbios, cruzamentos. Na verdade, a vingança literária do neto é o que está na dedicatória, que guarda a memória de quem ele conheceu na realidade: “A minha arma é o que a memória guarda”.
Portanto, Ricardo Ramos Filho, a partir de sua obra magistral, quer mostrar a singularidade de sua escrita, que se caracteriza pela polivalência. Apresentando as imagens opostas da utilidade e da inutilidade, mostra sua rede de relações, o que torna possível o poder crítico da sua literatura. Há uma mistura inusitada na sua escrita, revelando contradições e, ao mesmo tempo analogias, não apresentando a facilidade de uma escrita unilateral. Ao contrário, sua literatura é multifacetada, nos fazendo perceber os vários ângulos de uma questão. Para finalizar, podemos citar o livro A via de Chuang Tzu, uma releitura deste pensador oriental por Thomas Merton, onde encontramos um belo texto intitulado “A árvore inútil”. Essa árvore não pode ser cortada pelos problemas que ela apresenta, de modo de que não seja útil. No fim do texto, a resposta surpreendente de Chuang Tzu, dizendo que essa mesma árvore servirá de sombra para se descansar e que “nenhum machado ou decreto proclamará o seu fim”. Portanto, nunca será abatida: “Inutil? Que me importa!”
“Conversa comigo”, crônicas. Autor: Ricardo Ramos Filho. Editora Penalux, 180 págs., 2019.
Disponível em:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/conversa-comigo
E-mail: vendas@editorapenalux.com.br
Sobre a resenhista:
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
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