“Quando
se está em condições de vida reduzidas você tem que acreditar em todo tipo de
coisas.”
O Conto da Aia é um livro distópico. A obra
da escritora canadense Margaret Atwood já foi adaptada para o cinema, o teatro,
a ópera e uma aclamada série de TV (The Handmaid’s Tale). O livro foi publicado
no Brasil pela Editora Rocco em 2017 (366 páginas) e foi traduzido por Ana
Deiró.
A protagonista do livro chama-se Offred. É
ela quem narra toda a história que o leitor acompanha. Aos trinta e três anos
de idade é uma serva da República de Gilead (antigo Estados Unidos). É uma Aia,
que atua na casa de um comandante do exército casado com uma mulher chamada
Serena Joy, a quem Ofrred recorda-se de ter visto na televisão.
As mulheres que vivem na república não podem
ler. Somente as chamadas Tias, uma das divisões femininas da “hierarquia”
estabelecida no local tem permissão para ler e para escrever. Uma sociedade “construída sobre bases puritanas do século
XVII”, como diz a autora. Na República de Gilead as mulheres são reduzidas,
quase anuladas. Ás Aias, designação que cabe à protagonista, é dada a função
única de procriar e, quando são incapazes disso, são mandadas para a Colônia,
consideradas Não-Mulheres. Algum evento radioativo teria causado infertilidade
na maioria das mulheres, daí a importância dada a tal posição.
As mulheres são divididas em categorias. As
Marthas são responsáveis pelos serviços domésticos, as Tias ensinam as mulheres
a se comportarem de acordo com o que prega o regime totalitário e teocrático em
que vivem, as Esposas administram o lar.
Nessa nova sociedade há forte opressão e o
esmagamento das pessoas de sexo feminino, sobretudo; como se seu único e
importante atrativo fosse a função sexual (reprodução). Também são consideradas
Não-Mulheres e, portanto, enviadas para as colônias, as homossexuais, viúvas,
adúlteras e feministas.
Na referida Colônia o campo de radiação é
elevado e elas são obrigadas ao trabalho; uma combinação letal. Se alguma Aia
quebrar as regras receberão como castigo o mesmo destino dos criminosos. A pena
não é leve, tampouco pode ser reduzida. O castigo é o fuzilamento e a exposição
no Muro, onde mortos servem de exemplos para os demais. Os corpos são,
portanto, expostos em praça pública.
Com o totalitarismo que a ronda, Offred ainda
agarra-se a um pouco de esperança (mesma palavra que sinistramente lê-se nas
lápides). Sua esperança é a de encontrar, ou melhor, reencontrar seu marido
Luke e sua filha. Sabendo que quaisquer infrações ao regime pode lhe custar a
vida, ela se esgueira de forma ardilosa para descobrir segredos de quem a
cerca. Logicamente, isso põe em risco a sua integridade, mas parece ser o preço
a pagar para ter a sua vida (aquele que lhe fora roubada) de volta, ou pelo menos
um pouco dela.
“... se
minha vida for suportável; talvez o que eles estão fazendo seja correto no fim
das contas.”
O Conto da Aia é admirável. Margaret Atwood
aborda na história o que há por trás do poder estabelecido. Pode-se, inclusive,
observar quais são os caminhos políticos e as práticas estabelecidas num
sistema que deseja oprimir. É tenso! No entanto, a tensão que está presente em
toda a narrativa nos faz refletir sobre o nosso tempo, sobre a destituição de
direitos civis, sobre o machismo, sobre a opressão que recai sobretudo nos
ombros das mulheres, sobre os paradigmas que são estabelecidos e que “não
podem” ser questionados.
Em Gilead tudo é feito para parecer que não
há saída. Desde os tempos de formação da república, quando as mulheres tiveram
suas famílias destituídas, seus bem confiscados, seus filhos levados e os seus
direitos suprimidos. Sua única saída parece ser se render ao regime e tornar-se
objeto. Algumas se sentem “salvas” quando são enviadas a Casa de Jezebel ou ao
se submeterem as amarras que lhe são impostas, ou quando se seguram em posições
como as Tias, servindo ao regime e parecendo ser superior do que as demais
mulheres da república.
Um sistema totalitário como o de Gilead, para
exercer seu poder sobre os cidadãos, faz com que a individualidade inexista, o
que se reforça pelo fato de que as mulheres usam a mesma vestimenta (uma
espécie de uniforme). Chama atenção um adorno branco na cabeça que impede que
se comuniquem e que vejam do lado. Uma alusão, parece-me, a um cabresto. A
vestimenta igual é um passo para a perda da identidade, o que ocorre também com
o nome original que é substituído pelo prefixo “of” (de) seguido do nome do
homem a quem serve. No caso de Offred, de Fred (nome do comandante).
A forma como a narrativa foi construída pela
autora, utilizando a protagonista como narradora, dá um tom de memórias para a
obra. As interferências de sentimentos, pensamentos, desejos da personagem, se
apresentam durante a narração dos acontecimentos, o que permite ao leitor
sentir a inquietação própria de Offred e dá uma carga de dramaticidade.
O governo decide o que quer de você, o que
faz com você, como quer que sua vida seja. Define quem ou o que você será.
O Conto da Aia foi publicado originalmente em
1985 e é capaz de revelar um tema contundente que se faz atual. A narrativa de
Atwood não é muito linear, há um certo truncamento, que tira da zona de
conforto, sem ferir a transmissão da história e das mensagens passadas em sua
distopia.
O livro é impactante, não encontro outro
adjetivo para expressar o que provoca no leitor e tem uma história com
subtramas que tocam camadas profundas. O livro suscita reflexão sobre os tempos
em que vivemos, desde o machismo que se exacerba cada vez mais, quando deveria
estar se abrindo ao espaço e a liberdade da mulher, até o controle do estado
sobre o corpo, a vontade, a liberdade e os direitos individuais.
Margaret Atwood consegue expressar bem a
angústia de viver “em condições de vida
reduzidas” em que a personagem reflete com clareza o sentimento de
inexistência quando revela “é assim que
eu me sinto: pálida, desanimada, diluída. Sinto-me transparente.” O Conto
da Aia é um livro que vai além da história de distopia contada, traz uma
brilhante narrativa que mostra muito do caminho que muitas sociedades estão
seguindo... o caminho do retrocesso.
Foto: Jean Malek |
Sobre a autora
Uma das maiores escritoras de língua inglesa,
a canadense Margaret Atwood foi consagrada com algum dos mais importantes
prêmios internacionais, como o Man Booker Prize (O assassino cego, 2000) e o
Príncipe das Astúrias pelo conjunto de sua obra (2008). Transita com igual
talento pelo romance, o conto, a poesia, o ensaio, se destacando também por
suas sólidas incursões no terreno da ficção científica, em obras como Oryx e
Crake e o Ano do dilúvio, publicadas também pela Rocco.
Ficha
Técnica
Título: O Conto da Aia
Escritor: Margaret Atwood
Editora: Rocco
Edição: 1ª
ISBN: 978-85-325-2066-9
Número
de Páginas:
366
Ano: 2017
Assunto: Romance canadense
Li este livro há já alguns anos e gostei bastante - foi antes da série, e antes da eleição do Trump que levantou várias, novas questões. Acho que hoje o livro me assustaria mais que na altura, apesar de ter já uma forte consciência de muita coisa. O mundo está a mudar nesse sentido, e ainda bem. Quero ler mais da autora, sem dúvida!
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