[Resenha] Ébano sobre os canaviais - Adriana Vieira Lomar - Tomo Literário

[Resenha] Ébano sobre os canaviais - Adriana Vieira Lomar

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Ébano sobre os canaviais, da escritora Adriana Vieira Lomar, foi publicado pelo selo José Olympio, do Grupo Editorial Record (1ª edição; 238 páginas). O livro foi o ganhador da 7ª edição do Prêmio Kindle de Literatura.

A obra apresenta a história de José, um imigrante português que vem para o Brasil ainda jovem em busca de condições melhores de vida, no final do século XIX. O português vem de forma clandestina. Com uma trajetória de imigrante ilegal, recebe amparo e ajuda de um homem que aqui residia, até que consegue alçar ao posto de comerciante. Em sua formação ele é orientado por Henrique que não se junte ao pensamento do regime escravocrata: “É absurdo ainda existir escravidão.”

O Brasil foi o último país da América Latina a abolir a escravidão, o que ocorreu em 13 de maio de 1888 através da assinatura da Lei Áurea. E o livro de Adriana Vieira Lomar começa ambientado ainda na época da escravidão, período em que homens negros e mulheres negras eram forçados a executar tarefas sem recebimento de remuneração. Além disso, tinham a liberdade tolhida, eram considerados como objetos de seus proprietários e eram tratados como mercadoria.

José, “o peregrino”, apresentado no início do livro, “saiu do Porto em um porão escuro e fedorento. Quis partir para o outro lado do mundo. Fugia do medo, do medo da morte lenta, que chamava de pobreza, e da morte fulminante, que chamava de doença.”

Em terras brasileiras o jovem passa um bom período de estadia ao lado de Henrique, vice-cônsul, funcionário de carreira do consulado de Recife que tinha outros negócios além do consulado. É aqui, em terras brasileiras, que o português se apaixona por Ébano, a personagem que dá nome ao livro.

Ébano é uma mulher negra, alforriada, filha da escravizada Shakina. A história do nascimento de Ébano está ligada com a relação de Shakina e Chisulo, que têm suas vidas marcadas por eventos bastantes traumáticos. Eles foram brutalmente capturados no Congo e cruelmente separados após embarcados no navio que fez um longo e sombrio trajeto, cheio de tormentas.

No processo de desumanização, muito característico de situações de escravização, Shakina sofre uma violência inimaginável nas mãos do chefe dos traficantes de negros. O ato violento e criminoso resulta na gravidez de Ébano. “Com medo de morrer tão jovem, Shakina cedeu. Enquanto o chefe a dominava, as lágrimas caiam sem escândalo.”

Ébano é, portanto, fruto de estupro. Situação por si chocante e que nos remete à reflexão sobre como, muitas vezes, o processo de miscigenação no Brasil se deu por meio de ações de violência contra as mulheres. Fato que também ocorreu com indígenas.

Chisulo e Shakina se reencontram num engenho de cana-de-açúcar no interior do estado de Pernambuco, mas a reconciliação é ofuscada pela dura realidade da rotina de brutalidades a qual são submetidos. Ao adentrarem esse novo capítulo de suas vidas, Shakina e Chisulo percebem que as dificuldades estão longe de chegar ao fim.

A narrativa, além de tecer os intricados fios da história pessoal de Ébano e José, o casal de personagens principais da trama, revela-se como uma obra fundamental para compreender as raízes de muitos problemas sociais presentes no Brasil contemporâneo.

A personagem Ébano implementa uma luta contra preconceitos existentes na época para manter o seu relacionamento com José, tendo em vista que a sociedade recrimina o relacionamento do casal. Além disso a personagem coloca em cena o papel da educação. Desde pequena Ébano é atraída pela leitura e se torna professora, quando recebe a alforria, e almeja se tornar advogada, para conseguir retirar da cadeia alguém que ama.

Apesar do amor que há entre o casal, eles precisam se separar para que o filho do casal se torne um senhor de engenho e não passe por tanto preconceito como a mãe. Há uma dura decisão de Ébano para bem do filho, mas que expressa ainda assim, como a sociedade é preconceituosa e racista.



Quase dois séculos depois, o livro traz uma outra personagem em cena, chamada Maria Antonieta. Uma mulher extremamente racista, cercada de privilégios e futilidades, e com um ar de superioridade. No entanto, essa mulher começa a trilhar uma jornada de autoconhecimento após a separação do marido e, assim, ela descobre a sua verdadeira origem. Tal fato a faz revisar todo o seu comportamento, incluindo seus pensamentos preconceituosos.

Vale observarmos que as três histórias se entrelaçam e se tornam uma só, dando unicidade à trama criada por Adriana Vieira Lomar. Observamos nesse ponto que o livro nos diz que a vida do brasileiro de algum modo se entrelaça com o passado de escravidão que existiu nesse país e também com a imigração (aqui de portugueses, que foram colonizadores desta terra), mas que poderiam ser de quaisquer outros imigrantes que para cá vieram. Outrossim, temos uma demonstração de como determinados comportamentos e a formação do racismo estrutural perpetuou-se em muitos e múltiplos cenários da sociedade brasileira.

A história aborda o racismo, desde os tempos finais do século XIX, quando o tráfico negreiro era proibido no país. A proibição se deu em razão da Lei Eusébio de Queirós, em 1850. No entanto, é preciso falarmos que, apesar da proibição, ainda existia o tráfico e a entrada de negros escravizados se dava de forma ilegal. Como dito anteriormente, a abolição da escravatura se deu apenas em 1888.

A difícil vida dos negros desde aqueles tempos até o presente, a dura realidade de imigrantes, vai costurando uma história que fala sobre os dramas e angústias das personagens.  Há também personagens que fazem o contraponto à visão da época, como o próprio Henrique e sua esposa, que são abolicionistas.

No que se refere ao tempo, a obra vai do final do século XIX até os tempos atuais, o que permite uma compreensão bastante dinâmica de como os comportamentos do passado, criaram uma base estrutural racista para o tempo presente. Adriana, contudo, não deixa de tratar da ancestralidade e da memória, da busca por identidade e pela origem. José, Maria e Ébano são personagens intensas, completas, cheias de nuances que fazem com o leitor consiga visualizar a profundidade da construção de tais figuras.

A narrativa empregada por Adriana prende a atenção do leitor, capaz de se manter atento na história do início ao fim do livro. Aqui é preciso dizermos que Adriana Vieira Lomar tem uma forma singular de contar a história e a narra de maneira acessível. Que não se engane quem pensa que a simplicidade de uma narrativa é rasa. Pelo contrário, a simplicidade, a maneira de escrever que torna tudo inteligível, para que o texto atinja a quaisquer tipos de leitores, reforça que há um trabalho primoroso, inclusive na construção das personagens. Elas são cheias de camadas e suas interações na trama tem consonância com o viés psicossocial dessas criações.

Veja-se que a discriminação e o racismo estrutural, destacados por meio das experiências dos personagens, emergem como elementos cruciais para a compreensão da complexa teia que constitui a sociedade brasileira, iluminando as origens de desafios sociais que ainda ecoam no tempo presente.

Ébano, a menina que se torna mulher ao longo da história ficcional, também sofre preconceitos de cor, de gênero e de classe. Enfrenta uma realidade bastante cruel para mulheres negras, sendo julgada e subjugada por sua cor de pele, pelo seu gênero e pela sua condição social. A interseccionalidade é exposta na construção dessa personagem. No entanto, Adriana Vieira Lomar, constrói uma mulher que se insubordina, que tem voz, que luta por seu espaço.

A protagonista do livro não é como outras personagens negras que eram construídas no passado pela literatura brasileira. Outrora as personagens negras eram apoiadas na hegemonia branca, em que a mulher negra ocupava lugar secundarizado, sexualizado e resignado. Ébano emerge como uma mulher que encara as dificuldades impostas pela sociedade e se faz presente em busca de um espaço que é seu. Protagoniza a sua própria vida.

A ancestralidade africana é muitas vezes camuflada nas famílias brasileiras. Muita gente tenta descobrir o passado dos seus avós, bisavós, trisavós e nada encontra. Adriana quando da criação do livro reconstruiu e criou de forma ficcional a existência de sua trisavó.

Em entrevista ao Tomo Literário ela declarou: “Eu tinha vontade, sempre tive, de escrever sobre a minha ancestralidade de matiz africana. Cresci escutando meu pai me contar uma história que o afligia. Seu bisavô teve um filho único que herdou um engenho de cana de açúcar. Meu pai não sabia o nome de sua ancestral preta. Nenhuma certidão de nascimento dizia seu nome. Esse vazio me moveu à escrita.” Na ficção, a trisavó ganhou o nome de Ébano.

Ébano sobre os canaviais é um livro que trata de um romance entre um homem branco e uma mulher negra, expõe questões de uma sociedade racista, trata da interseccionalidade, fala sobre amor, amizade, compaixão, mudança, educação, sobre mexer com as estruturas sociais, culturais e políticas de uma nação. Parte da história de uma mulher para demonstrar a história de um povo.



Sobre a autora:

Adriana Vieira Lomar nasceu em 1968. Carioca de família alagoana, considera Ébano sobre os canaviais a possibilidade de conferir à sua trisavó um nome, uma história, uma lápide e uma memória. O livro, vencedor do Prêmio Kindle de Literatura de 2022, com o qual estreia na José Olympio, é dedicado à sua ancestralidade multirracial. Adriana também é autora dos livros Aldeia dos Mortos, Corredor do Tempo (ambos publicados pela Patuá) e Ambiguidades (livro que foi publicado pela Penalux).

Ficha Técnica:
Título: Ébano sobre os canaviais
Escritora: Adriana Vieira Lomar
Editora: José Olympio
Ano: 2023
Edição: 1ª
Páginas: 238
ISBN: 978-85-5847-137-0
Assunto: Romance brasileiro

Nota: a entrevista de Adriana Vieira Lomar está disponível no link abaixo:



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