Desamparo - Fred Di Giacomo - Tomo Literário

Desamparo - Fred Di Giacomo

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Desamparo, livro de Fred Di Giacomo, foi publicado pela Editora Reformatório. A obra, que foi uma das finalistas do Prêmio Jabuti de 2019, apresenta a formação de cidades no interior de São Paulo.

Com personagens intrigantes que navegam entre a ficção e fatos históricos, acompanhamos o avançar do progresso e a vida dessa gente que se perfaz diante de tudo que se impõe ou que surge em seu caminho. Como bem frisa o trecho no início da obra: "nosso país foi construído sobre um amontoado de guerras civis abrandadas nos livros de escola como revoltas infantis..." Se isso dá a todos a impressão de que somos um país de gente ingênua e cordial, tal visão pode ser mudada quando observamos as revoltas que ocorreram e modificaram regiões. 

Temos a família Capa Negra, descendentes da ama de leite de Dom Pedro: Maria Francisca Capa Negra que foi casada com o português Abel Antonio de Castro, que veio da famosa Ilha da Madeira. Maria Francisca herdou uma vastidão de terras. Mulher forte e corajosa, não dependia de homem algum para cuidar de si e dos filhos e por gerações o apelido que colhera virou sobrenome dos descendentes dos Castros.

Grande parte de suas terras foram presente do Imperador, a quem amamentou com os seios cheios de leite, sobretudo quando seu filho mais novo nasceu. Um dos filhos, Jorge Luís, carregava certa mediunidade que assustava a mãe.

Maria Chica teve doze filhos, sendo a última chamada de Rita Telma "para ficar com nome de gente importante". Ela é quem narra toda a história do livro, contando-nos o que acontecia naquelas bandas. Gente que queria o progresso a todo custo, porque com ele lucrava; pessoas que brigavam pelo poder; a morte como forma de convencer os outros a tomar determinadas decisões; e uma porção de fatos que soam fantásticos e casam bem com a visão que se tem em cidades (sejam elas grandes ou pequenas; urbanas ou rurais). Eventos misteriosos e fantásticos que envolvem personagens igualmente carregados de expressão acontecem ao longo da narrativa.

Os eventos não são contados de forma linear, são apresentados como se fizessem parte de um flashback narrado por Rita, de tudo aquilo que ela acompanhou desde o nascimento da cidade. Além disso, ela conta-nos a sua própria história.  Filha da mulher, cujas terras foram dando lugar à cidade, ela se vê atormentada pelo espírito de seu pai, um homem que teria perdido o amor, as propriedades e até a honra, dado que dele caçoavam. Ela, com esse desamparo (que também é o nome da cidade que se forma e que dá título ao livro) busca de alguma forma se vingar pela memória do pai.

Interessante observar a narrativa que carrega um tom leve, mas ao mesmo tempo se faz profunda. Uma narrativa clara, bonita de se ler e que tem uma pitada de lirismo  (mesmo quando há passagens que tratam de momentos inusitados e quiçá até humorados).

A construção dos diálogos e a forma com que os personagens a expressam também merecem destaque. Ao ler o texto temos a percepção da boa construção dos personagens, os seus maneirismos e o modo singular que cada um tem de falar. São diálogos sonoros que vão além do papel impresso e que enchem de vida os personagens criados por Fred.

A guerra, ou melhor, o confronto se fez necessário para que a cidade avançasse. A política, naturalmente, aparece nesse cenário e, por bem ou mal, também promove transformações na vida das pessoas. E  há um personagem que antagoniza com Rita que é um homem cheio de intenções com o progresso que tem por objetivo que sua história seja marcada por ter conseguido auferir algum avanço na cidade. Quantos políticos não pensam em colocar seu nome na história a qualquer custo?

A voz feminina que narra dá à mulher um protagonismo que vem da herança de sua mãe, o que implicitamente corrobora a ideia de mulheres fortes, corajosas, inteligentes e articuladas sem, no entanto, ser panfletário. Elas são de fato forte. Essa força não é forçada (com perdão do trocadilho). Esse viés, embora escrito por um homem, conseguiu ser bem apresentado pela voz da protagonista narradora.

Desamparo tem uma narrativa fluída, coerente e que se mantém coesa, mesmo com a forma com que lembranças aparecem no decorrer da história. Reside um dos pontos que garantem a consistência de um bom escritor, posto que não importa o momento em que o fato ocorreu, mas que dentro da trama ele aparece no momento propício, em conexão com a história que se conta, sem perder o foco do ponto central e apresentando camadas que se somam.

Em quinze anos a cidade passa por imensas transformações. Nas batalhas travadas de maneira individual ou coletiva, vemos também a necessidade de um povo por sua terra, e amor e ambição que tantos outros devotam ao solo em que nasceram, onde cresceram e onde a vida finda.

A história de Desamparo se encarrega de nos trazer uma porção de significados que estão presentes na formação de um povo, que pode ser o representado no livro, mas que poderia ser outro aqui ou em qualquer canto do mundo com uma ou outra perspectiva que se diferenciasse, mas a essência do existir pelo chão que se pisa está ali. A existência que se traz no sangue (pelo que se herda e pelo que se revolta).

Desamparo é uma obra, cujo conteúdo se expande para além da própria história que nos é contada.

Fred Di Giacomo | Foto: Reprodução

Sobre o autor:

Fred Di Giacomo se define como um caipira punk nascido em Penápolis, sertão paulista. Autor de sete livros (entre não ficção, prosa e poesia), entre eles, Canções para ninar adultos, Haicais Animais e Prato Firmeza – guia gastronômico das quebradas de SP, finalista do Prêmio Jabuti. Como músico e letrista, gravou dois discos na banda Bedibê. Mora atualmente na Alemanha. 

Ficha Técnica:

Título: Desamparo
Escritor: Fred Di Giacomo
Editora: Reformatório
Edição: 1ª
Ano: 2018
ISBN: 978-85-66887-43-3
Páginas: 245
Assunto: Romance brasileiro

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