Por
Alexandra Vieira de Almeida
Segundo Walter Benjamin, na modernidade, o
ser perdeu a capacidade de narrar adequadamente, pois a informação foi o
declínio da narrativa, que se pauta pela sabedoria e pelo ensinamento. A
informação que condiz com a novidade se esgota em sua presença atual. A sabedoria
é milenar. Na narração verdadeira, o leitor é livre para interpretar a história
como quiser, o que não ocorre com a informação. Benjamin diz: “A experiência
que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E,
entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das
histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”. No livro de
contos de Verena Cavalcante, O berro do
bode (Penalux, 2018), temos os ingredientes da verdadeira arte de narrar,
tão perdida na época atual, pela massificação do discurso, que preza pela mera
informação, sem traduzir o impacto que a experiência nos revela.
Temos 10 contos belamente narrados com
maestria por esta escritora singular, que demonstra experiência e maturidade em
narrar causos que estão interligados com a experiência da oralidade. Logo na
apresentação dos contos, a autora aqui em questão fala desta tradição oral,
como uma roda em torno da vela a nos mostrar “ecos da essência do que é ser
humano”. Nesta “ancestralidade selvagem”, que ela denomina, voltamos às nossas
origens. Mas ao voltar das luzes das lâmpadas, voltamos à nossa rotina insossa,
sem nenhuma perspectiva. No início, temos uma explicação da autora do que vem a
seguir nos seus contos, um preâmbulo do que vai acontecer, neste “lar de tudo o
que é sagrado”, unindo o profano ao sagrado. Não há leveza nos seus contos e,
sim, tragicidade, a escritora não quer nos embalar em sonhos, mas nos mostrar o
lado sombrio da vida.
No conto que abre o livro, “Tempestade”,
temos uma menina loba que vai viver com os cães, fugindo de todo conforto de
nossos olhos amenos. Com cenas fortes e impactantes, a autora dedilha um acorde
cortante para nossas faces suaves. A profundidade do olhar de Verena Cavalcante
expõe a nudez dos seres humanos, traduzindo o revelar de coisas até repugnantes
para aqueles que pensam que a literatura só deva nos falar da leveza. Mas o peso
com que a autora percorre as malhas de sua narrativa é posta em relevo também
pela delicadeza com que ela conduz suas narrativas magistrais. O paradoxo
peso/delicadeza só faz nos mostrar o quanto de pluralidade os seus textos são
criados, sem cair na mesmice e na narrativa fácil, de apenas uma forma de
leitura, quando, na verdade, Verena nos seduz pelos caminhos múltiplos de
interpretação. A menina loba que convive com os cães é o chamado para nossa
sabedoria mais arcaica, o que está nos primórdios como força arquetípica de
nossa essência como seres humanos, pois a animalidade nos leva a repensar sobre
nossa verdadeira humanidade. Eis o paradoxo.
No conto “Um pardal pousa na janela” temos o
olhar de um menino em primeira pessoa, mostrando a delicadeza do olhar infantil
sobre as coisas, como ele observa tudo a sua volta debaixo da mesa em sua casa,
como se este olhar traduzisse uma comunhão entre o eu e o outro, o ser e o
mundo de expectativas de um garoto. A escritora por ora aqui apresentada faz
uma relação inusitada entre seres e bichos. Há uma animalidade latente em cada
ser humano e uma humanidade que tangencia o reino animal, produzindo seus
hibridismos. Na sua narrativa, encontramos cães, pardais, gatos, galinhas,
ratos, porcos, bodes etc. Essas comparações só traduzem uma reflexão sobre a
própria vida em toda sua extensão. A dureza da vida é revelada nas múltiplas
comparações entre seres e animais. Em “Venham repartir o pão”, temos um
sacrilégio em meio ao momento sagrado da comunhão. Nesse sentido, o sagrado e o
profano se casam, mostrando os desejos arcaicos da humanidade, que não apenas
se traduzem em beleza e tranquilidade, mas em violência, como o assassinato de
um padeiro no dia de Páscoa.
Verena Cavalcante |
Câmara Cascudo, nosso maior folclorista,
disse: “Nenhuma ciência possui como o folclore maior espaço de pesquisa e de
aproximação humana. Ciência da psicologia coletiva, cultura do geral no homem,
da tradição e do milênio na atualidade, do heroico no cotidiano, é uma
verdadeira História Normal do Povo”. É o que encontramos nesse livro
excepcional de Verena Cavalcante, a sabedoria do povo com seus causos e
histórias de arrepiar. Como não nos lembrarmos de Edgar Allan Poe no conto “Um
sorriso nos lábios”, em que o fantástico comparece com toda sua força? Aqui,
temos fios que se tocam, o amor e a morte. No conto “Porquizôme”, temos a festa
da carnavalização animal, onde não sabemos qual a fronteira entre os homens e
os animais: “...qual deles porco, qual deles homem?” O ser humano é
caracterizado como animal (“mãos aracnídeas”, “vaca prenha”). E o porquinho
demonstra seu intenso carinho pelo menino. O cuidado do menino com seu porco é
exemplar. Aqui, temos a ironia com o sagrado, com imagens mescladas entre o
religioso e o homem mau e violento (anjos, Deus todo poderoso). O pai bêbado e
alcoolizado espancava a mãe do menino e dá uma surra no garoto por seu amor
pelo porco. Temos a imagem novamente aqui da violência do pai e da delicadeza do
amor entre o menino e seu animal de estimação, o porquinho. As imagens da vida
e da morte se cruzam nesse conto maravilhoso.
No conto que fecha o livro e dá título à obra
de Verena, “O berro do bode”, a questão da maternidade é sagrada, pois ser mãe
é ser divina, ser deusa. No Dicionário
de símbolos de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, temos: “Exatamente como o
carneiro, o bode simboliza a pujança genésica, a força vital, a libido, a
fecundidade”. A personagem do conto é estéril e recorre a uma feiticeira para
gerar filhos. Para isto, ela tem que escutar o berro do bode. O final é
surpreendente e trágico como o canto do bode, pois a tragédia, literalmente,
significa “canto do bode”. Por isso, segundo os dicionaristas citados acima, o
bode é um animal trágico, noturno e lunar.
Portanto, nesta obra impactante de Verena
Cavalcante, encontramos a força criativa da narração, que é contar experiências
ao redor das fogueiras de nossos laços com o mundo. Um livro que traduz os
paradoxos de nossas vidas, com beleza, mas também com perversidade, sem se
pautar em maniqueísmos simples, mas nas ambiguidades do literário, revelando
toda sua maestria como narradora de acontecimentos importantes, que têm algo a
nos dizer por sua extrema sabedoria.
“O Berro do Bode”, contos. Autora: Verena Cavalcante. Editora Penalux, 80 págs.,
R$ 34,00, 2018.
Disponível em:
A
resenhista
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura
Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e
ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora
Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas,
pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias
em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro
“Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
Nota: foto de divulgação da Editora Penalux.
Nota: foto de divulgação da Editora Penalux.
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