Por Krishnamurti Góes dos Anjos
O título “Contos de
amor, ódio e sacanagem” sobre a foto “ousada” – com mulheres nuas e semi-nuas
-, na capa do último livro do escritor Furio Lonza, pode sugerir interpretações
de estarmos diante de mais uma obra pornográfica ou coisa que o valha. E é até
natural que assim se pense, em dias nos quais o enlace de corpos humanos deixou
de ser a última parte de um envolvimento amoroso, e é visto e assimilado -
porque incentivado- , como necessidade vital de animais que copulam, matam e
morrem com a mesma indiferença.
Entre o que se vê
inicialmente, e o que se passa a ler, vai uma diferença profunda, substancial,
sobretudo quando sabemos que foi escrita por um autor que já dobra a quarta
década de produção literária que lhe renderam 20 títulos publicados. Embora ele
afirme na Introdução, que a mulher está presente nos contos em todas as suas
configurações, e que atua de maneira orgânica e autônoma, e se recorde das
imagens da capa, não se espere encontrar “sacanagens libidinosas” explicitadas
em palavras porcas ou termos chulos ecoando em cenas eróticas. Quando o sexo
aparece, e aparece muito, é sempre de permeio com uma visão filosófica. Algo
natural na vida, força que une e afasta os homens e, nas narrativas de Lonza, a
tensão erótica se distorce na presença de um discurso ricamente filosófico.
Contraponto portanto, do instinto puro.
O autor afirma ainda
na introdução da obra, que a mulher “é quem dá as cartas e estipula os
limites”. Mas o ponto de vista, devemos advertir – e aí talvez um atrativo a
mais no conjunto dos contos -, é que a maioria das narrativas acontecem em
primeira pessoa, e sob uma perspectiva masculina. Aí o universo em destaque.
Não é a descrição e o estudo psicológico da alma feminina que fica mais
evidente, mas como essa alma atua no psicológico masculino. Diferente pois, do
que fez um Machado de Assis por exemplo, ao criar suas mulheres enigmáticas.
Há uma epígrafe na
obra creditada a Noel Rosa: “A mulher é o aperitivo que anima o homem a provar
o prato indigesto que é a vida”. Aperitivo que, a julgar por alguns dos contos
reunidos se afiguram mais como veneno letal! Interessante uma relação que pode
ser entendida no título: “Contos de
amor, ódio e sacanagem”. Aí está. “Amor”, aperitivo ao prato indigesto que é a
vida, o “ódio”, veneno que se mostra pior do que uma indigestão, e a
“sacanagem”, mistura dos dois de que é feita a vida. Explicitemos a ideia ou o
método – expressão muito usada pelo autor, com a própria obra, e, sobretudo,
com o conto que a inaugura: “Laurinha a santa”.
O início é
arrebatador pela curiosidade que desperta: “A primeira vez que quis matar minha
mulher foi no Natal passado. Um olhar dela foi o suficiente. Dizem os
entendidos que os olhos refletem o que vai pela alma. Revelam o que sentimos
(mas que, por pudor não divulgamos), o que pensamos (mas ainda não conseguimos
verbalizar), o que intuímos, o que almejamos. Há uma pergunta, contudo, que
pode ocorrer ao leitor mais curioso (ou sensato): um olhar espremido entre duas
batidas de pálpebras, pode explodir dentro de alguém a vontade de tomar uma
atitude dessas proporções? Eu respondo: pode”.
O texto narra a
história de um casal que vive uma vida um tanto quanto harmoniosa. Entretanto,
pelo que ficou transcrito acima se poderia pensar que entre eles houvesse
acontecido grave episódio de indiferença, repulsa ou traição... Não. O olhar a
que o narrador alude foi lançado pela esposa ao marido, na noite da ceia de
Natal quando ele, após umas tantas talagadas de vinho, embrenhou-se em
elucubrações filosóficas sobre a virgindade da santa mãe de Jesus. “Foi
justamente nessas alturas do campeonato que recebi aquele olhar complacente de
minha mulher”. Seguiu-se silenciosa indignação geral entre os presentes, mas
Laurinha não. E aí começa o inferno: “minha mulher estava na contramão. Queria
me anular com um excesso de compreensão, usava o amor como arma para me
neutralizar”. “Esse olhar meigo não corresponde a nenhuma lógica aceitável”,
pensou o marido que passa a expor a vida da esposa, criada de modo a
despertar-lhe egocentrismo avassalador. A criatura era de uma perspicácia
monumental, urdira plano progressivo e infalível para levar a cabo a vida
conjugal à sua maneira. Concordava com ele em tudo. Tudo que o marido dizia,
pensava ou fazia, ela apoiava. Não havia dissensões, e essa constância de
concordância dócil o foi exasperando simplesmente porque Laurinha era-lhe, não
uma outra pessoa com quem convivesse e trocasse ideias, experiências e pontos
de vista. Era uma sombra. Isto pareceu ao homem que, propositalmente, a
intenção da esposa era: torná-lo um “gago mental, um cachorrinho numa coleira,
um verme social. Minha personalidade descia ladeira abaixo”... vejam o que é a
mente humana e o que ela pode produzir. Mas o pior ainda estava por vir.
Depois de períodos de
altos e baixos, Laurinha foi tecendo, tecendo e tecendo com sua meiguice e
docilidade e foi “domesticando” o homem, desde a cor da gravata que ele devia
usar até a limitação dos drinques. Positivamente não foi à toa que Voltaire.
Escreveu: “É mais claro que o sol, que Deus criou a mulher para domar o homem”.
Embora haja indomáveis na natureza humana... Muito bem.
“A segunda vez que
pensei em matá-la aconteceu três meses depois. E a causa não foi uma palavra,
não foi um olhar. Foi (acreditem se quiserem) uma trepada”. Uma trepada
daquelas. Certa noite ao voltar do
trabalho para casa, o marido encontra a mulher, deitada na cama vestida com uma
roupinha transparente e curta que lhe deixava as maravilhosas coxas de fora. “Vem
cá, ela disse, senta aqui, e bateu a palma da mão duas vezes no colchão.
Sentei. Começaram as carícias”... “Depois, Laurinha disse-lhe, entre outras coisas,
que ele lhe “despertava zonas erógenas desconhecidas, que ele era seu garanhão,
seu macho, seu cobridor. Que a satisfazia em todas as instâncias que uma mulher
pode imaginar”. E é então, que o sujeito, cônscio, de não ser nada daquilo
“endoidece” de vez e pasmem! “Começou a pesquisar os diversos tipos de veneno
que a humanidade colocou em circulação nos últimos quinhentos anos”. Leva
adiante um plano de envenenar a mulher, até que o inusitado acontece: a
criatura sob a administração oculta do veneno,
além de não morrer no tempo em que ele havia planejado, engravida. Esta
armado o efeito único que todo contista persegue. O desfecho então é
surpreendente e ligado àquele mito/realidade da virgindade da mãe de Jesus, do
início da narrativa. O que temos em suma nesse conto? Uma mulher com plena
consciência da superioridade sobre o espírito do marido, ou simplesmente mais
um caso de paranóia machista? Fica a dúvida que só o leitor responderá.
Conferiram o desfecho, simplesmente surpreendente.
Extraordinários os
demais contos, tanto na forma quanto no conteúdo variado, e não por acaso. O
autor que também domina os meandros da dramaturgia, declarou recentemente que
por 5 longos anos vinha compondo a obra, e assim, mexeu em vários, aprimorou,
trocou de lugar, jogou muita coisa fora e concebeu variantes. No conto “O
método” somos apresentados à Juliana uma atriz que intuitivamente era sinuosa.
“Hibrida: fazia um jogo cruel de meio de campo, com os homens. Distribuía as
bolas na diagonal e o atacante que se virasse”. Mas Juliana, uma mulher linda,
tinha horror ao belo, assim como o entendemos. Uma caixa de surpresas essa
Juliana. Em “tudo parece impossível”,
conhecemos a história surreal de um casal. A mulher não conseguia pregar olhos
e infernizava a vida do marido com isso, ou por isso mesmo, ou por alguma outra
causa secreta. Esta ficção é o exemplo vivo e ampliado do que observou Oscar
Wilde: “As mulheres não sabem o que querem, e não dão descanso, enquanto não
recebem aquilo que querem”.
Em “My name is
nobady” conhecemos Esther um exemplo de mulher forte, fria e decidida. Sabe o
que quer e onde pisa, pensa manejar e comandar, sendo astuciosa e cerebral, mas
afinal, em matéria de amor, dá com os burros n´água. Positivamente Furio Lonza
é um profundo conhecedor da natureza humana e grande delineador de personagens.
Veja-se o conto “Apontamentos para um assédio” onde aflora uma densidade
psicológica capaz de criar uma atmosfera voltada para o inusitado, ainda que
esse inusitado vá dando pistas aqui e ali no desenrolar da ficção. A elasticidade temporal também é uma das marcas
desse texto, pois a marcação do tempo psicológico transcorre independente do
tempo cronológico e com ele confunde-se. Ao demorar-se no tempo psicológico o
autor faz com que o leitor sinta uma ambigüidade em relação aos acontecimentos,
a dúvida sobre os fatos, e uma recorrência digna de nota, a expressão “por
suposto” sempre entre parêntesis (Aquilo que é alegado ou admitido por
hipótese, hipotético, conjeturado). Aqui temos a revelação dos dilemas da
consciência quanto à erotização desenfreada de nossos dias que não respeita
idades, Partindo de uma perspectiva de um homem maduro em relação à uma garota
de 13/14 anos que, dado aos seus conhecimentos sexuais, está mais para uma ninfetinha descolada. Conto de desfecho
verdadeiramente dantesco!
Sem dúvida vários
outros contos da obra poderiam ser escolhidos num critério exclusivo de gosto
pessoal para um comentário adicional. Estou a lembrar-me agora do inesquecível
“Mercedes”... mas; não, vamos colocar o ponto final na resenha, apresentando a
memorável Gigi do conto “Do nada e de todas as implicações na relatividade da
existência”, um conto profundamente filosófico narrado em primeira pessoa por
um Eu que não se identifica plenamente, e mostra-se preocupado em provar por
A+B, algumas coisas, dentre elas o fato de que a escala de valores que a
humanidade anda seguindo, “caducou faz uns quinhentos anos ou pelo menos desde
quando o ser humano imaginou que poderia resolver seus problemas através do
pensamento racional”. Segue-se um emaranhado interessante de análises filosóficas e psicológicas sobre
a significação do “zero” e do “nada’ na escala do raciocínio humano, até que, pimba!
Aparece na vida do sujeito a Gigi!
Uma criatura que
fisicamente, seria capaz de frustrar os planos mais bem combinados de um homem,
enfraquecer a vontade mais resoluta, sobretudo para olhos lascivos. Sobre ela o
narrador protagonista escreveu:“E você acha que, diante de um belo rosto, coxas
grossas, um sorriso admirável e um par de peitos que te viram do avesso, alguém
vai prestar atenção em algum tipo de uniformização de ideias? Se gosta do
amarelo, se prefere gato a cachorro, se é católica, budista ou islâmica, se tem
predileção por poesia ou prosa? Além disso, havia outro problema: não consegui
detectar tipo algum de malandragem em Gigi. Era centrada, dona do próprio
nariz, isso era indubitável, mas não ostentava arrogância alguma, era simples.
Para ela, um escondidinho de carne moída no jantar era motivo de júbilo.
Resolvemos morar juntos. Um apartamento de quarto e sala modesto num prédio
cujos locatários eram estudantes e putas num bairro longínquo foi a solução
diante do parco orçamento mensal. Eu trabalhava numa gráfica e ela era
recepcionista numa agência de automóveis usados. Vestia-se nos trinques,
mostrando tudo em cima e em baixo”... Mas o insólito, é que ninguém iria
imaginar que uma mulher assim fosse entrar “numa neura” existencial de
encontrar o “absoluto da existência”,
seja lá o que isso signifique. O certo, é que, (e levando em conta o
depoimento do narrador), a criaturinha defendia que “O homem atrapalha pelo
simples fato de existir. Ele não deve interagir, não deve interferir, acho a
ação humana nefasta por definição. A única saída é anular-se, minimizar ao
máximo nossa presença na Terra, deixar que a roda do mundo complete sua rota
livremente”.
E o leitor começa a
desconfiar que Gigi ou o narrador andam fumando lá uma porrada de maconha. Em
frente: Gigi deu de tentar cristalizar objetos no tempo e no espaço, inclusive
pensamento, fala e sintaxe até que em um belo dia ela simplesmente evaporou-se
sem deixar rastros. Teria ela alcançado a façanha da desintegração total? Bom; o fato é que o narrador procurou pra cá
e pra lá, e nada da mulher que fora eficaz até em matar o pretérito, apagando
rastros, evidências e indícios de sua existência. E vamos afinal entrando num
clima hipnótico de derrocada do ser que restou saudoso. O enlouquecido amante
depois de estadias em manicômios e etc., termina indo parar em um circo – grande
metáfora do mundo atual -, apresentando um número no qual se prometia à platéia
a visão por alguns segundos do “Nada absoluto”. Depois de breves momentos de
fremente expectativa, a platéia afinal visualizava horrorizada a jaula onde
estava encarcerado o narrador, e o que se via era um farrapo humano exposto
numa jaula. Tomada de pânico inominável a platéia assistia uma imagem que não
se pode apagar jamais, a pior e mais impiedosa de nossas detratoras, a imagem
de nosso mundo interno...
Positivamente Furio Lonza
nos apresenta nesses seus “Contos de amor, ódio e sacanagem”, 18 narrativas que
traduzem relacionamentos afetivos onde estão expostos conflitos dúvidas e
certezas, misérias e grandezas, amores e ódios. Cada personagem um prisma que
separa as cores de nossa mais pura e crua realidade, ou por outra, as cores do
humano, do demasiadamente humano.
Serviço:
Título: Contos de Amor, Ódio & Sacanagem.
Autor: Furio Lonza
Especificações: 14x21, 292 p., 1ª
edição – Editora Penalux, 2018.
Preço: R$ 45,00 | Link para compra: http://bit.ly/contos_de_amor_clique_leia
Amostra grátis:
http://bit.ly/trecho_do_livro_furio
Sobre o autor:
Foto: Divulgação |
Furio Lonza é escritor, dramaturgo e jornalista. Entre
romances, contos e ensaios, tem duas dezenas de livros publicados e completa este ano
quarenta anos de literatura. Foi co-editor da lendária revista Chiclete
com Banana e mora no Rio de Janeiro.
Mais
informações:
Sobre o crítico:
Krishnamurti Góes dos
Anjos é escritor, pesquisador e crítico literário. Autor de: Il Crime det Caminho Novo – Romance
Histórico, Gato de Telhado –
Contos, Um Novo Século – Contos,
Embriagado Intelecto e outros contos
e Doze Contos & meio Poema. Tem participação em 22 Coletâneas e
antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Seu último livro – O
Touro do rebanho – romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso
Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores
UBE/RJ em 2014. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em
diversos sites dentre os quais: Literatura BR, Homo Literatus, Mallarmargens,
Diversos Afins, Revista Subversa, Germina Revista de Literatura e Arte,
Suplemento Correio das Artes, São Paulo Review e Revista InComunidade de
Portugal.
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