“Futuro do Pretérito”: novo livro da escritora carioca Lilian Dias perpassa temas que vão do amor e do afeto cotidiano à construção da memória coletiva do país - Tomo Literário

“Futuro do Pretérito”: novo livro da escritora carioca Lilian Dias perpassa temas que vão do amor e do afeto cotidiano à construção da memória coletiva do país

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Mariana só tem memórias do que não viveu. Apesar de parecer contraditório, a afirmação da protagonista de “Futuro do Pretérito” (Editora Labrador, 176 págs.), romance da autora carioca Lilian Dias (@lilianrdias), é o ponto de partida da história de uma mulher sem passado que descobre a si mesma, seus afetos e seu país, a partir de recortes do presente e da possibilidade de um futuro. 


A memória individual e coletiva é o tema principal apontado pela autora para a construção do livro, que espelha a passagem do tempo em uma narrativa não-linear, assim como a memória de Mariana. “Estes temas estão presentes em praticamente tudo o que escrevo”, reflete Lilian sobre sua obra. “Talvez porque sejam os que melhor me permitem compreender o mundo em que vivemos, do ponto de vista das inter-relações humanas.”


Assim como o personagem Joel, livreiro amigo de Mariana, Lilian tem uma longa trajetória relacionada ao livro. Foi sócia de sebos que funcionaram em Copacabana e no Centro do Rio, no início dos anos 2000. Também trabalhou como restauradora de livros antigos e foi pesquisadora de obras raras. Atualmente se dedica à escrita de romances e contos.  


Ambientado a partir do início dos anos 1980, entre idas e voltas no tempo, “Futuro do Pretérito” é sobre os encontros e desencontros afetivos de Mariana, mas também é a construção de uma narrativa de cunho político e cultural. Em um período marcado pela redemocratização após a ditadura militar, a criação de uma nova Constituição e o advento da militância ambiental, Lilian apresenta um olhar para o Brasil em todas as suas contradições.


Ao trazer histórias individuais, envolvendo personagens comuns, Lilian propõe uma reflexão sobre a construção de um país. “Relações estabelecidas na base do afeto e do acolhimento do outro são capazes de construir um edifício de memória coletiva extraordinário.” Para a autora, a relação entre as pessoas mediam a construção cultural de um povo em suas próprias contradições. “O mundo não tem realidade objetiva, ele é um emaranhado de construções de narrativas que se entrecruzam e, muitas vezes, brigam entre si.” 


O quintal de Mariana é feito de livros e acolhimento


Sobrevivente de um acidente que matou seus pais e irmão, Mariana considera que nasceu aos 11 anos. “Antes disso, tive outro nascimento e outra infância, mas não me lembro”, nas palavras da personagem. Vivendo com uma tia abastada após a tragédia, Mariana tem dificuldade de reter memórias do seu dia a dia a cada noite dormida. Dessa maneira, a garota entende seu presente a partir de fragmentos de memória e da repetição como o hábito que cria sua noção de “eu”. 


Mariana não tem problemas para lembrar o que estuda ou histórias que lê. A literatura, o cinema e especialmente a música são ferramentas concretas que a personagem usa para perceber a passagem do tempo. Mas os acontecimentos de sua própria vida se diluem diariamente. O trecho em que Mariana reclama que sua tia não a deixa ter um tênis velho, explica bem essa relação de sua memória com aquilo que é palpável. “Pouca coisa nesse mundo pode ter mais memória do que um tênis surrado.” 


Porém, a falta de memória também ampliou a maneira da menina enxergar a realidade. Por exemplo, na relação afetuosa com Joel, com quem estabelece uma cumplicidade mediada inicialmente pelos livros que ele vende. Mariana faz do sebo de Joel seu “quintal” de infância onde pode recomeçar todos os dias com o apoio e o cuidado do livreiro. E cresce nesse ambiente de confiança e cumplicidade, mesmo que para isso seja necessário repetir um mesmo diálogo por vários dias seguidos.


A quebra da rotina de esquecimento diário de Mariana acontece quando ela conhece Carlos, a partir de seu trabalho sobre os impactos socioambientais na construção de hidrelétricas. Um engenheiro envolvido no projeto que vem a se tornar uma figura central na militância ambiental do país, principalmente na defesa dos direitos indígenas, Carlos é a primeira pessoa de quem Mariana consegue lembrar em detalhes no dia seguinte. Da conversa, até o envolvimento amoroso de ambos, ele se torna uma espécie de âncora de memória, inclusive despertando lembranças da vida dela pré-acidente. 


A conexão Carlos atravessa décadas de uma relação de amor recíproco, mas baseada na inconstância do engenheiro que faz da militância sua vida, negligenciando seu amor. Entre encontros em momentos chaves na luta pelo meio ambiente nas últimas décadas, como durante a Rio-92, Mariana e Carlos compartilham as preocupações socioambientais e vivem o amor por suas próprias regras. “Nossos momentos juntos foram lacunas no tempo e no espaço de nós dois”, reflete Mariana em um trecho do livro.

Lilian Dias / Foto: Divulgação

Escrever para entender o mundo


Lilian Dias tem 58 anos, nasceu e cresceu no Rio de Janeiro, mas atualmente vive em Saquarema, cidade da Região dos Lagos. Tendo cursado Filosofia e Ciências Sociais, a autora optou por não seguir carreira acadêmica e passou a trabalhar como tradutora de inglês, francês e espanhol até começar sua trajetória no universo dos livros.


Apesar de escrever contos desde os anos 90, Lilian iniciou o desafio de escrever romances em 2015, autopublicando em 2016 o livro “Acorde vagante” e “A dobra do fio” em 2023, ambos via Amazon. Em “Futuro do Pretérito”, a autora encontrou uma forma de lidar com perdas, tanto pessoais como as que se relacionam com a ideia de um país do qual sente uma espécie de orfandade. “Escrever me ensina a lidar com a solidão e com a incompreensão daquilo que nos rodeia”, analisa.


Em um processo que considera transformador, a escritora afirma que o livro lhe ensinou o poder que a construção de uma narrativa tem para a compreensão de um mundo caótico. “Em geral, meu processo de criação toma um tempo mais longo”, explica Lilian, comentando que o livro foi escrito em apenas quatro meses. “Mas este me pegou num momento em que tive muitas perdas pessoais consecutivas, separações, lutos, que geram um sentimento de desenraizamento muito forte”, compartilha.


Atualmente, a autora tem pronto um original de contos, em negociação com editoras, e está escrevendo um romance curto, que pretende publicar ilustrado.




Confira trechos do livro:


“A paixão é algo que acontece dentro da gente. Não vem do outro, entende? vem de nós e pode nos elevar a uma condição com que nunca sonhamos. Mas não é responsabilidade do outro. É sua somente. Esse rapaz é um despertador de sonhos”


“Quando uma música, por exemplo, te faz lembrar de um acontecimento ou de uma época da sua vida, você está, na verdade, lembrando de si mesmo, de quem você era e de como percebia o mundo naquela altura da vida.”



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